Dados is one of the most widely-read social sciences journals in Latin America. Created in 1966, it publishes innovative works, originating from academic research, by Brazilian and foreign authors. Edited by IESP-UERJ, it aims to reconcile scientific rigor and academic excellence with an emphasis on public debate based on the analysis of substantive issues of society and politics.
Em 1988, Sérgio Abranches publicava na DADOS um dos artigos mais citados da revista: “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”. Trinta anos depois, o conceito proposto no artigo ainda é chave fundamental para compreensão da política brasileira e seus dilemas, suscitando acalorados debates públicos e acadêmicos. A convite de DADOS, Abranches retoma no texto a seguir todo esse debate, bem como suas evoluções recentes, além de conjecturar sua validade para os anos que se seguem.
Luiz Augusto Campos (editor-chefe)
Por Sérgio Abranches.
Em 1987, escrevi “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, publicado em DADOS, no início de 1988. O artigo analisava o modelo político brasileiro que estava subjacente à tendência dominante nos debates da Assembleia Nacional Constituinte e terminou, efetivamente, adotado na Constituição. O conflito entre a versão da Comissão de Sistematização, mais progressista, e o “centrão” mais conservador, organizado no plenário da Constituinte, apontava na direção do restabelecimento do modelo de 1946, ainda que com alterações. Retornaríamos, portanto, ao presidencialismo e ao multipartidarismo. Isso me convenceu de que se deveria examinar de forma mais sistemática os elementos institucionais da versão de 1946 do presidencialismo brasileiro e seus fundamentos sociológicos, para verificar os riscos à estabilidade política da democracia renascente. Evidentemente, tanto no debate constituinte, quanto em minha visão estava presente o espectro do fracasso do regime, o golpe de 1964 e a ditadura militar.
Desenvolvi, para tanto, um quadro de referências conceitual para demonstrar que o presidencialismo brasileiro continha tantas diferenças em relação ao modelo americano, a ponto de caracterizar um novo tipo de presidencialismo, que defini como presidencialismo de coalizão. Esse novo tipo se construía a partir da combinação do federalismo extenso e heterogêneo, da representação proporcional de lista aberta, de um sistema multipartidário, do bicameralismo e de uma Presidência forte e minoritária. Da perspectiva comparada, que adotei no artigo, o presidencialismo de coalizão diferenciava-se significativamente do presidencialismo americano e dos parlamentarismos europeus, inclusive aqueles que recorriam a coalizões multipartidárias para formar os governos.
Dei ênfase ao fato de que o presidente é eleito pelo voto direto majoritário do eleitorado nacional, enquanto os deputados e senadores têm nos estados seu colégio eleitoral. A Câmara é eleita pelo voto proporcional e o Senador pelo voto majoritário simples. Dadas a heterogeneidade estrutural do país e as variações regionais na força dos partidos, a configuração do eleitorado presidencial se distancia significativamente da conformação do voto para o Legislativo, tornando improvável que o partido do presidente consiga maioria no Congresso. Em decorrência, tanto a governabilidade, quanto a governança passam a depender da formação de uma coalizão majoritária no Congresso.
Essa dependência da Presidência a uma forte maioria é agravada pela necessidade reiterada de reformar a Constituição. A falta de confiança entre as forças sociais e os partidos levou, desde a Constituinte, à inclusão de temas típicos de políticas correntes na Constituição. A necessidade de emendas, seja para alterar políticas, seja para incluir novos temas, exigindo quorum de 60% dos votos, sobredeterminava a formação de “grandes coalizões” (um traço evolutivo que emergiria com a prática, portanto ausente no artigo). Nele, alertei, todavia, para alguns aspectos problemáticos, à luz das disfunções do modelo de 1946. Há um elemento estrutural de instabilidade da governança em um regime presidencialista dependente de coalizões parlamentares grandes, em um sistema partidário com tendência à fragmentação. Por outro lado, a diferença entre as jurisdições eleitorais do presidente e dos parlamentares embute potencial não desprezível de conflito entre as agendas do Legislativo, de inclinação mais conservadora, e do Executivo, de disposição mais reformista. No modelo anterior, esse conflito foi mediado por vetos militares, cuja recorrência politizava e radicalizava a alta oficialidade. Com o afastamento dos militares da política e os limites constitucionais que lhes seriam impostos, levantei a hipótese de que essa mediação passaria a ser feita pelo Judiciário. A judicialização da política conferiria uma espécie de poder moderador ao Supremo Tribunal Federal.
Trinta anos depois da publicação do artigo, período no qual me dediquei a outros temas de estudo, decidi escrever um ensaio longo, reavaliando as origens histórico-estruturais do presidencialismo de coalizão e fazendo um balanço histórico do desempenho dos governos da República. Revisitei a história republicana por suas crises, buscando entender os processos que encurtam mandatos presidenciais e ferem a estabilidade institucional. Desde 1945, excetuado o período autoritário da ditadura militar (1964-85), os presidentes brasileiros têm dependido de coalizões para governar, tornando-se reféns dos humores das oligarquias congressuais e estaduais. Nesse quadro institucional volátil, a implementação de políticas públicas fica aquém das necessidades do país. Clientelismo, corrupção e judicialização da política são aspectos hoje salientes do nosso modelo político que, se permitiu avanços significativos, tem mostrado disfunções e déficits de qualidade. O resultado foi publicado em livro.
A primeira questão, a meu ver, era por que o sistema bipartidário federal descentralizado, com uma Presidência fraca, foi substituído por um sistema partidário centralizado e uma presidência forte? Em outras palavras, porque o modelo presidencial da Primeira República (1889-1930), claramente inspirado na constituição dos Estados Unidos, não levou à consolidação de um presidencialismo bipartidário como lá?
A Primeira República se constituiu como uma frouxa federação de estados poderosos em uma União fraca. O presidente era o representante do consenso político entre as forças dominantes nos estados mais poderosos política e economicamente. O bipartidarismo no plano federal encapsulava diferentes sistemas de forças políticas estaduais, revelando o embrião de um sistema multipartidário regionalmente diferenciado. O colapso da Primeira República levou a um regime fortemente centralizado e autocrático, sob o comando de Getúlio Vargas. O fim da ditadura Vargas, numa onda democratizante determinada pelo após Segunda Guerra, culminou na Constituinte que instituiu o modelo político que defini como presidencialismo de coalizão. Um sistema partidário moderadamente fragmentado, com tendência à fragmentação crescente a cada ciclo eleitoral. O Judiciário, embora nominalmente independente, jamais foi capaz de atuar como uma terceira força para dirimir os impasses entre Executivo e Legislativo. Essa falha facilitava a intervenção arbitral recorrente dos militares e sua politização. Do mesmo modo que a versão original de nosso modelo político representou uma reação à experiência da Primeira República oligárquica e da ditadura Vargas, a versão, de 1988, respondeu às visões do fracasso da Segunda República e à vivência sob o regime militar.
As diferenças entre as duas versões do presidencialismo de coalizão, as características institucionais e a dinâmica político-decisória do modelo de 1988 foram analisadas por uma vasta e competente bibliografia, da qual me aproveitei para escrever o ensaio. São inúmeros os autores importantes na consolidação do nosso conhecimento do modelo político brasileiro em vigência. Menciono, como exemplares, as contribuições significativas de Argelina Figueiredo, Fernando Limongi, Fabiano Santos e Octávio Amorim Neto, entre, como disse, numerosos outros autores.
Concluí, com ajuda desses estudos e de uma análise detalhada do noticiário e dos debates parlamentares, que houve um claro padrão de desenvolvimento: a cada ciclo de governos autoritários, a Constituinte subsequente retinha algumas características institucionais por eles introduzidas e, ao mesmo tempo, reagia a suas feições autocráticas. O resultado foi um modelo político com um sistema partidário hiperfragmentado; um sistema federativo fortemente centralizado; um processo orçamentário que confere à Presidência o poder de agenda e amplos poderes discricionários sobre o gasto público; um Judiciário e órgãos de controle judicial mais fortes e independentes. Os estados e municípios ficaram demasiadamente dependentes do Governo Federal para financiar até mesmo ações que estão entre suas atribuições constitucionais exclusivas. Os parlamentares passaram a ter como uma de suas funções centrais atuar como intermediários políticos para extrair recursos fiscais da União em benefício de seus redutos eleitorais. Essa situação de dupla dependência — do presidente a uma coalizão parlamentar multipartidária extensa e das unidades da federação ao orçamento da União controlado discricionariamente pelo presidente — gerou um poderoso sistema de incentivos ao clientelismo, ao toma-lá-dá-cá e à competição por postos ministeriais e na burocracia federal com poder sobre o orçamento ou capacidade regulatória. A complexidade do processo político de formar e administrar coalizões excedentes da maioria simples e a barganha permanente por recursos fiscais, como prerrequisitos das decisões legislativas e da disciplina das coalizões, se tornaram, a meu juízo, as fontes principais de disfunções no sistema político brasileiro. Essa negociação sempre mais centrada em recursos do que em estratégias ou soluções, reduz a qualidade das políticas substantivas e eleva a probabilidade de criação de vastas redes de corrupção político-empresariais.
Um efeito colateral da extensiva constitucionalização de políticas públicas e da rotinização do emendamento constitucional é a judicialização da política. A revisão judicial de constitucionalidade e a intervenção da Suprema Corte para arbitrar conflitos entre facções no Congresso e entre Executivo e Legislativo tornaram-se elementos rotineiros da politica brasileira. O envolvimento reiterado do STF em conflitos políticos e institucionais levou à politização do Judiciário. Minha impressão, após a análise de vários casos levados ao STF, é que a judicialização da política ainda é maior e mais ampla do que a politização do Judiciário.
A conclusão a que cheguei, nesse balanço de 30 anos de presidencialismo de coalizão, é que a versão construída em 1988, com as alterações adaptativas que se seguiram, é mais resiliente a crises do que a versão original, de 1946. O modelo resistiu a dois processos traumáticos de impeachment. Resistiu à mudança do polo de poder, da aliança de centro-direita que apoiou os governos de Fernando Henrique Cardoso, para as coalizões de centro-direita-esquerda que mantiveram os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff. Passou por dois momentos de alta turbulência e incerteza, com os processos do Mensalão e da Lava Jato. Desaguou em uma eleição ultrapolarizada e agora enfrenta o desafio de um governo minoritário de ultradireita. Este último movimento não analisei no livro, que vai até o governo Temer, mas tratei dele, numa espécie de posfácio, em “Polarização radicalizada e ruptura eleitoral”, em Abranches et allii (2019).
Sérgio Abranches (1988). “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, DADOS, v. 31, n. 1, pp. 5-33.
Sérgio Abranches (2018). Presidencialismo de coalizão: raízes e trajetória do modelo político brasileiro, Companhia das Letras.
Sérgio Abranches et allii (2019). Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil de Hoje, Companhia das Letras, pp 11-34.
ABRANCHES, Sérgio. Trinta anos de presidencialismo de coalizão, Blog DADOS, 2019 [published 31 May 2019]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/trinta-anos-de-presidencialismo-de-coalizao/