Os estudos de políticas públicas em tempos de pandemia

Lígia Madeira (UFRGS), Luciana Papi (UFRGS), Leonardo Geliski (UFRGS) e Taciana Rosa (UFRGS)


A ciência, que andava tão contestada, voltou a se demonstrar imprescindível no contexto da pandemia do novo coronavírus, o maior desafio da humanidade desde a Segunda Grande Guerra. O imponderável tem suscitado reflexões rápidas da comunidade científica e é fundamental situar as contribuições da área de políticas públicas para entender as pandemias, os governos e seus sistemas de proteção social – e em seu âmbito a saúde – com os atores e instituições tomando decisões sobre o cotidiano de vida e de morte de populações.

Políticas públicas dizem respeito ao que os governos fazem – ou deixam de fazer. A área de estudos surgiu nos Estados Unidos nos anos 1930 como forma de colaborar com a produção empírica dos governos que, não por acaso, ampliavam seu escopo de atuação na industrialização, na economia, na proteção social e no planejamento, em função da crise de 1929 que exigiu novas performances do Estado. Desde então, a área tem crescido no mundo todo, contribuindo com conhecimento e metodologias (tais como planejamento, monitoramento e avaliação de políticas) que apoiam a produção dos governos e impactam na vida das pessoas. No Brasil, o campo de públicas se expandiu no final da década de 1990 a partir de debates sobre o funcionamento das instituições estatais, especialmente do impacto das relações governamentais, do federalismo, das capacidades estatais e das burocracias na formulação e implementação de políticas públicas[1].

Reside na área de políticas públicas, portanto, a função de compreender a ampla atribuição dos Estados e os tipos de intervenções na sociedade, seja na economia, seja na provisão de serviços públicos. A crise mundial tem revelado que modelos de Estados de bem-estar[2], com suas distintas formas de cobertura, importam sobremaneira nas formas como os governos têm enfrentado e mitigado a pandemia.

Estados com sistemas de proteção universais, com amplas coberturas em seus sistemas de saúde, educação, previdência e assistência social revelam ter melhores condições de lidar com situações adversas como a que estamos vivenciando. Welfare states como o dos países escandinavos e o alemão, pela tomada de decisão antecipada, têm conseguido diminuir a curva de contágio, retardando o pico da doença e, com isso, reduzindo o número de mortos.

As mudanças pelas quais passaram os Estados de bem-estar dos países do Sudeste Asiático, rumo a welfare states mais inclusivos, parecem também fazer diferença na forma como eles vêm lidando com a crise[3]. Por outro lado, sociedades cuja orientação é por mercadorizar tais serviços, entregando-os à iniciativa privada, muitas vezes sem maiores regulações, estão demonstrando dificuldades em organizar e prover os cuidados necessários à população, como é o caso estadunidense.

Se as cartilhas liberais, vide o antigo Consenso de Washington, volta e meia defendem menos Estado e menos proteção social com a “justificativa” de inchaço e crise fiscal, hoje comprova-se que Estados mais preparados diminuem as chances de terem de lidar cotidianamente com as tristes escolhas sobre quem deixar viver ou morrer, e sua tradicional opção por garantir aos mais ricos a primeira opção.

Na América Latina, o processo de constituição dos Estados e da proteção social foi dependente de sucessivas estratégias desenvolvimentistas e liberais, que ora recolocavam o papel do Estado como um ente regulador do mercado, dando centralidade às políticas sociais; ora privilegiavam o enxugamento estatal e a consequente retirada de direitos e políticas públicas[4]. No Brasil, apesar da orientação welfarista da Constituição de 1988, que ampliou e consolidou formalmente direitos sociais, sua materialização através da construção de amplos sistemas de proteção capazes de garantir sobrevivência diante das vicissitudes do capitalismo e suas crises à maior parcela da população, esteve sujeita a avanços e retrocessos.

No caso da seguridade social brasileira, desde 1990 esforços de diferentes governos buscaram implementar proteção social por meio de sistemas únicos de acesso universal como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Foram décadas de pesquisas que demonstraram os avanços e limites[5] no nível de estruturação e na capacidade dessas iniciativas lidarem com a saúde coletiva, com destaque para os estudos epidemiológicos e a atuação do SUS junto à alta complexidade. Apesar do SUS servir inclusive de modelo[6] para o SUAS[7], seguindo um padrão de incrementalismo nas políticas no país[8], desde 2015[9] suas conquistas passaram a ser explicitamente ameaçadas e atacadas e os resultados infelizmente estão sendo sentidos hoje.

Políticas públicas dão conta também de investigar como desenhos diversos de Estado implicam em formas de gerir e implementar políticas. O tema dos Estados unitários e federados, incluindo os distintos tipos de federalismo, discute se a autonomia local pode garantir provisões mais acertadas, por agir localmente, de acordo com as realidades próximas; ou se é uma coordenação central que irá justamente inibir que as desigualdades estruturais se sobreponham ao necessário provimento de serviços públicos de saúde[10]. O confronto federativo que temos visto entre governadores versus governo federal é um exemplo presente no enfrentamento da pandemia de Covid-19, mas devidamente conhecido da literatura no que toca à guerra fiscal[11]. Este conflito está amparado nas indefinições constitucionais que permitiram a diferentes entes o compartilhamento de competências nas ações governamentais.

É visível a ação e coordenação dos governadores brasileiros, os antigos Barões da Federação[12], que vinham perdendo poder e recursos ao longo da redemocratização. Por outro lado, se há alguma atuação no Executivo federal, esta deve-se muito mais à institucionalização de uma burocracia técnica e profissional, evidente no legado do Ministério da Saúde, do que propriamente da vontade do nosso representante eleito, cuja conduta nem vale a pena comentar.

É também a área de políticas públicas que investiga – a fundo – a maneira pela qual se darão mudanças e adequações no caminho entre a saída das políticas do papel até chegarem aos cidadãos. Entre a proposta, desenho e posterior implementação de políticas, o nível de profissionalização da burocracia determinará a qualidade com que os serviços públicos serão entregues para as pessoas. Todos os níveis da burocracia estatal são essenciais para o sucesso desse processo, mas um em especial acaba por ser o responsável pela materialização das ideias previamente formuladas pelo alto escalão e gerenciadas pelo médio escalão, que é o conjunto de atores que chamamos de burocracia de nível de rua[13].

Esses profissionais possuem o poder de alocação dos recursos disponíveis nos serviços públicos. Chamamos esse poder de discricionário, devendo ser exercido nos limites da lei e em defesa da ordem pública. Entretanto, leis criam padrões, e nossa realidade é mestra em diversidades. Decifrar essas realidades tão complexas, repletas de constantes insuficiências de recursos  (informacionais, materiais, humanos, temporais) que, por exemplo, uma emergência de um hospital, ou uma unidade básica de saúde, ou até mesmo um centro de referência de assistência social possam estar vivenciando em meio a situações de emergência em consonância com a exposição das múltiplas vulnerabilidades nas atuações desses burocratas de nível de rua (médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, assistentes sociais e tantos outros) também são missões de um(a) analista de políticas públicas.

São os estudos de políticas públicas que investigam ainda quem são as instituições por trás de diferentes propostas de intervenção estatal e como instituições originariamente não participantes do jogo político entram nele e passam a deter poderes infinitos sobre como gerir a coisa pública.

No contexto de calamidade pública que vivemos, intensificaram-se as relações entre as instituições do sistema de justiça e os demais Poderes, com o Judiciário elevado à arena decisória da política de enfrentamento à crise da Covid-19. O fato novo é o Judiciário, o Legislativo, os governadores e os ministros atuarem para bloquear ações do Presidente da República, em uma configuração de desenho federativo. A judicialização da saúde (e suas conhecidas controvérsias) assumirá ampliada relevância, pois serão os leitos obtidos por ações judiciais que garantirão, mais uma vez[14], o direito à vida, mas a tensão entre constranger o poder público para que aja de maneira a garantir direitos constitucionalizados sempre esbarrará na dificuldade de garantia de acesso à justiça, que acabará por reproduzir desigualdades já estabelecidas, e que resultarão, novamente, em privilégio dos que têm sobre os que não têm. É também na guerra federativa que o judiciário terá uma atuação crucial, ao mediar a batalha por equipamentos de proteção individual (EPI), respiradores e toda a sorte de materiais necessários em cada rincão do país.

Para além da mediação de conflitos, as instituições do sistema de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria etc.) vêm se constituindo como atores da própria política, seja das relações entre os Poderes e entes federativos, com o contingenciamento de seus orçamentos para repasses ao Poder Executivo (será?!), seja como executores de políticas judiciais específicas, como a recomendação quanto à implementação de ações de combate ao novo coronavírus dentro do sistema penal e socioeducativo brasileiro.

Os governos geralmente buscam amenizar as crises econômicas e os riscos que sempre sucedem as pandemias[15]. O Brasil vem adotando uma política de transferência de renda para garantir que trabalhadores informais, de baixa renda e desempregados tenham algum socorro. Essas ações voltadas à economia também partem do aprendizado institucional, pela aplicação de mecanismos criados ao longo dos últimos governos. O uso do cadastro único de programas sociais para garantir a renda mínima aprovada aos trabalhadores é mais um exemplo do, até então, institucionalizado SUAS brasileiro. A utilização de expertise e estrutura já existentes do reconhecido e exportado Programa Bolsa Família[16] para atacar necessidades prementes do cotidiano de milhares de pessoas é um primeiro passo, mas cabe também a nós desenvolvermos pesquisas comparadas que avaliem, rapidamente, diferentes iniciativas em curso em diferentes países.

São inúmeros, portanto, os exemplos em que os estudos em políticas públicas são necessários por suas análises, diagnósticos e também denúncias. Sem eles, aspectos sociais e políticos da realidade vivenciada por aqueles que estão lidando diretamente com o vírus (pesquisadores, profissionais da saúde e outros profissionais essenciais) não seriam postos a nu. E neste momento o rei está verdadeiramente nu (e contaminado?).

Notas

[1] MARQUES, Eduardo; SOUZA, Celina. (2016), “Políticas públicas no Brasil: avanços recentes e agenda para o futuro”. In: AVRITZER, Leonardo; MILANI, Carlos; BRAGA, Maria S. (Orgs.). A ciência política no Brasil: 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV Editora; ABCP.

[2] BENDER, Katja; KALTENBORN, Markus; PFLEIDERER, Christian (Ed.). (2013),  Social protection in developing countries: Reforming systems. Routledge.

COCHRANE, Allan; CLARKE, John; GEWIRTZ, Sharon. (2001), Comparing Welfare States. Londres: Sage.

ESPING-ANDERSEN, Gosta. (1990), The three worlds of welfare capitalism. Princeton University Press.

[3] CHAN, Kam Wah. (2012), “Rethinking flexible welfare strategy in Hong Kong: a new direction for the East Asian welfare model?”. Journal of Asian Public Policy, v. 5, n. 1, p. 71-81.

KWON, Huck‐ju. (2005), “Transforming the developmental welfare state in East Asia”. Development and Change, v. 36, n. 3, p. 477-497.

[4] STEFFEN, Mariana Willmersdorf; CÔRTES, Soraya Vargas. (2018), “Understanding social protection systems in Latin America and the Caribbean: Typologies and efforts of classification”. Sociology Compass, v. 12, n. 11.

DRAIBE, Sônia; RIESCO, Manuel. (2011), “Estados de Bem-Estar Social e Estratégias de Desenvolvimento na América Latina: Um Novo Desenvolvimentismo em Gestação?”. Sociologias, vol.13, n.27.

MADEIRA, Lígia Mori. (2014), “Políticas sociales en Brasil del siglo XXI: el regreso al desarrollismo y la centralidad del área social”. In: BONILLA SORIA, Adrián; ÁLVAREZ ECHANDI, Isabel; SÁENZ BRECKENRIDGE, Stella (ed.). Políticas sociales en América Latina y el Caribe: Escenarios contemporáneos, inversiones y necesidades , 1ª. ed. – San José, C.R.: FLACSO – CAF.

[5] CÔRTES, Soraya Maria Vargas. (2014), “O Sistema Único de Saúde no Brasil: uma avaliação”. In: MADEIRA, Lígia (org.). Avaliação de políticas públicas. Porto Alegre: UFRGS, 2014. p. 179-194.

[6] GÓMEZ, Eduardo J. (2010), “What the United States can learn from Brazil in response to HIV/AIDS: international reputation and strategic centralization in a context of health policy devolution”. Health Policy and Planning, v. 25, n. 6, p. 529-541.

Diversos outros estudos podem ser conferidos na Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde.

[7] VAITSMAN, Jeni; ANDRADE, Gabriela; FARIAS, Luis. (2009), “Proteção Social no Brasil: o que mudou na assistência social após a Constituição de 1988”. Ciênc. Saúde Coletiva, v. 14, n.3, Rio de Janeiro.

[8] FALLETI, Tulia; ANGELUCI, Alan. (2010), Infiltrando o Estado: a evolução da reforma da saúde no Brasil, 1964-1988.

[9] Como exemplo de retrocessos que implicaram em alterações e/ou retirada de direitos constitucionais, com reflexos diretos sobre a gestão da pandemia, pode-se citar a Reforma Trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467 de 2017); a PEC dos Tetos dos Gastos Públicos (convertida na Emenda Constitucional nº 95 de 2018); a Reforma da Previdência (EC nº 103 de 2019).

[10] ARRETCHE, Marta. (2012), Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV.

[11] MELO, Marcus André. (1996), “Crise Federativa, Guerra Fiscal e “Hobbesianismo municipal” efeitos perversos da descentralização?” São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v.10, n. 3, p. 11-20.

[12] ABRUCIO, Fernando Luiz. (1998), Os barões da federação: os governadores e a redemocratização brasileira. Editora Hucitec.

[13] CAVALCANTI, Sérgio; LOTTA, Gabriela Spanghero; PIRES, Roberto Rocha Coelho. (2018), “Contribuições dos estudos sobre burocracia de nível de rua”. In: PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela; OLIVEIRA, Vanessa Elias de (Orgs.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: IPEA.

[14] OLIVEIRA, Vanessa Elias de. (2019), Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz.

MADEIRA, Lígia Mori; GELISKI, Leonardo. (2017), “Políticas sociais nos tribunais intermediários: tribunais regionais federais em evidência”. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, Bogotá, v. 23, p. 305-326.

[15] PECKHAM, Robert. (2013), “Economies of contagion: financial crisis and pandemic”. Economy and Society, v. 42, n. 2, p. 226-248.

[16] GONNET, Cecilia. (2016), “Mecanismos y actores en los procesos de difusión: discusión a partir de los casos de los Programas de Transferencia Condicionada en América Latina”. In: Faria, C.A.P; Coelho, D.; Silva, S.J. Difusão de políticas públicas, p. 65-100.

Como citar este post

MADEIRA, Ligia; PAPI, Luciana; GELISKI, Leonardo; ROSA, Taciana. Os estudos de políticas públicas em tempos de pandemia, Blog DADOS, 2020 [published 17 April 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/os-estudos-de-politicas-publicas-em-tempos-de-pandemia/

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