O que podemos aprender sobre desigualdade de gênero a partir de 9.757 propostas submetidas ao edital Universal 10/2023 do CNPQ?

Dalson Figueiredo (UFPE) e Luciana Luz (UFPE)


No último 24 de outubro, o CNPQ divulgou o resultado preliminar do edital universal 10/2023. Convidamos você a desbravar as discrepâncias de gênero em relação aos valores aprovados. Das 9.757 propostas submetidas, 2.751 foram aprovadas, correspondendo a 28,2% do total. Por gênero, homens e mulheres apresentaram taxas de sucesso muito semelhantes. Das 5.449 propostas submetidas por homens, 28,5% receberam a aprovação, ao passo que, de maneira comparável, 28% das 3.970 propostas submetidas por mulheres foram exitosas. Todavia, a equivalência de resultados não se reflete na alocação de recursos. Comparativamente, os homens receberam um montante superior em recursos, com uma média de R$ 101.831 por projeto, em contraste com os R$ 92.275 destinados às mulheres, em média, por proposta. Essa diferença de R$ 9.556 é, para usar o jargão científico, estatisticamente significativa e poderia, a título de exemplo, viabilizar a aquisição de três laptops da marca Dell Inspiron 15.

De forma similar, no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, de acordo com o censo de 2016, a participação de mulheres como pesquisadoras líderes é sempre menor que a dos homens: na faixa etária de 25 a 29 anos é de 35,2%, 30 a 34 anos é de 41,9%, 35 a 39 anos é de 44,3%, 40 a 44 anos é de 45,7%,  e, por fim, há maior aproximação da equidade entre 45 a 49 anos, chegando a 49,3%. Percebe-se que as diferenças são mais acentuadas nas faixas etárias em que as mulheres estão em idade reprodutiva.

Não conseguimos identificar o gênero de 338 projetos cujos proponentes conservam nomes menos populares e que, por isso, não estão listados na memória no pacote genderBR. Classificamos então o gênero de 111 proponentes a partir de uma consulta manual no Google. Para uma amostra de 61 homens com nomes pouco convencionais, a média de recursos aprovada é de 117.305. Para uma amostra de 50 mulheres na mesma situação, a média cai para 95.569, a diferença média chega então a R$ 21.736, que seria suficiente para financiar uma missão internacional. Em conversas informais com colegas de profissão recebemos algumas objeções que serão consideradas a seguir.

 

Objeção 1:

“Mas é importante também observar os casos discrepantes, outliers. Eles podem prejudicar a comparação entre os dois grupos”. Para abordar essa hipótese recalculamos então a diferença na quantidade de recursos aprovados para homens e mulheres a partir da média aparada e da mediana, conforme ilustra a Figura 1.

Figura 1 – Valores aprovados por gênero (CNPQ, 2023)

Independente da forma de mensuração (média, média aparada ou mediana), a diferença entre homens e mulheres persiste. Considerando a média aparada, que desconsidera os valores extremos, a diferença é de aproximadamente R$ 9.659.  Por sua vez, se a gente olhar a mediana, que é o valor que divide a distribuição em duas partes iguais, a diferença é de R$ 9.400. Isso reforça a robustez do padrão encontrado.

 

Objeção 2:

“Mas o mais adequado seria observar o valor solicitado e não o aprovado. O viés pode começar por mulheres pedindo menos recursos”.

Lamentavelmente, a planilha disponibilizada pelo CNPQ não fornece os montantes das solicitações originais, limitando-se a expor apenas o que foi aprovado pela agência de fomento. Diante dessa lacuna, examinaremos agora se a disparidade entre os gêneros pode ser atribuída a variáveis adicionais, como a localização geográfica dos proponentes. A Tabela 1 compara a média de recursos aprovados por homens e mulheres por região do país.

Tabela 1 – Média de recursos aprovados por homens e mulheres por região (CNPQ, 2023)

Região Homens Mulheres Dif (R$)
Norte 93.447 87.491 5.956
Nordeste 97.270 89.969 7.301
Centro-Oeste 98.213 92.979 5.234
Sudeste 104.487 96.251 8.236
Sul 104.874 87.426 17.447

 

As evidências indicam que a desigualdade de gênero no acesso a recursos de pesquisa também persiste por região. No Norte, os homens ganharam cerca de R$ 6 mil a mais por projeto aprovado, em média. No Nordeste, a vantagem masculina é de pouco mais de R$ 7 mil. No Sul, a diferença média chegou a R$ 17.447. Essas disparidades regionais destacam a complexidade do problema e podem fornecer insights para a formulação de estratégias de promoção da igualdade de gênero em financiamentos de pesquisa.

 

Objeção 3:

“Mas isso se deve à distribuição de gênero entre as áreas. Mulheres tendem a se concentrar em campos que necessitam de menos recursos, como Letras e Educação”.

Para avaliar essa conjectura, calculamos então a média de recursos aprovados para projetos coordenados por homens e mulheres por área, conforme a definição dos Comitês de Assessoramento (CAs). O Gráfico 1 ilustra essas informações. 

 

Gráfico 1 – Diferença entre homens e mulheres por CA (%)

Em certos campos, como Medicina Veterinária, projetos liderados por homens desfrutam de uma vantagem notável, recebendo, em média, um acréscimo de 77% nos recursos disponíveis. Na Engenharia Agrícola, essa disparidade atinge 64%, enquanto na área de Psicologia e Serviço Social, a diferença chega a 43%. Por outro lado, áreas como Administração e Economia (3,9%), Medicina (1,6%) e Engenharia Química (1,2%) são aquelas em que os homens demonstram a menor vantagem em relação às mulheres no tocante à alocação de recursos para a condução de projetos de pesquisa. Estes achados revelam padrões surpreendentes na distribuição de financiamento por gênero em diferentes áreas de pesquisa.

Para estes resultados, uma possível explicação é a de que mulheres estão concentradas em áreas relativas ao cuidado e em campos relacionados à gestão, engenharias e finanças, prevalecem os homens (VAZ, 2013; BIROLI, 2016). Nas áreas onde há uma maior diferença dos recursos está inserida a Engenharia Agrícola e curiosamente Medicina Veterinária, Psicologia e Assistência Social, em que normalmente prevalecem mulheres, apresentando-se com maior vantagem para os homens. Este prejuízo feminino pode estar relacionado a fatores de gênero como a conciliação da vida pessoal e profissional, incluindo a maternidade (SANTOS MACHADO et.al., 2019; MORGAN et.al., 2021). Estudos já apontam que a maternidade pode significar, entre outras coisas, uma diminuição da produção científica de mulheres (ICHIKAWA, et. al., 2018). Iniciativas inovadoras, como o Parent in Science, tem contribuído para incluir o debate sobre parentalidade na agenda de políticas públicas.

Em resumo, o desequilíbrio de gênero na alocação de recursos pelo CNPQ transcende fronteiras geográficas e áreas de conhecimento. Na verdade, fizemos este cálculo também: considerando propostas da mesma região e do mesmo Comitê de Assessoramento, projetos coordenados por homens receberam, em média, R$ 6.469 adicionais em comparação com uma proposta coordenada por uma mulher. Com este artigo esperamos chamar a atenção dos órgãos de fomento no sentido de incluir correções monetárias específicas para projetos coordenados por mulheres e incentivar a elaboração de editais de pesquisa especificamente voltado para pesquisadoras.

Nota

Todos os dados e scripts computacionais utilizados para produzir este artigo estão publicamente disponíveis aqui.

Sobre os autores

Dalson Figueiredo (dalson.figueiredofo@ufpe.br)  – Professor Associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Luciana Luz (luciana.luz@ufpe.br) – Doutoranda em Ciência Política no PPGCP/UFPE e servidora técnica administrativa na UFPE

Referências

BIROLI, Flávia. (2016), “Divisão sexual do trabalho e democracia”. Dados, v.59, n.3, p.719-754.

ICHIKAWA, Elisa., YAMAMOTO, Juliana., BONILHA, Maíra. (2008), “Ciência, tecnologia e gênero: Desvelando o significado de ser mulher e cientista”. Serviço Social em revista, n.11, n.1, p.1-15.

LATTES. Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. http://lattes.cnpq.br/web/dgp/por-lideranca-sexo-e-idade.

MORGAN Allison. et al. (2021), “The unequal impact of parenthood in academia”. Science Advances7(9).

MACHADO, Leticia. et al. (2019), “Parent in science: The impact of parenthood on the scientific career in Brazil”. In 2019 IEEE/ACM 2nd International Workshop on Gender Equality in Software Engineering (GE) (pp. 37-40). IEEE.

VAZ, Daniela. (2013), “O teto de vidro nas organizações públicas: evidências para o Brasil”. Economia e Sociedade, v.22, p.765-790.

 

Como citar este post

FIGUEIREDO, Dalson; LUZ, Luciana. “O que podemos aprender sobre desigualdade de gênero a partir de 9.757 propostas submetidas ao edital Universal 10/2023 do CNPQ?”. Blog DADOS, 2023 [published 6 Nov. 2023]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/desigualdade-de-genero-propostas-cnpq/

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