Quatro lições do coronavírus para o fomento à ciência no Brasil

Luiz Augusto Campos (editor-chefe)


Em poucos meses, a rápida transmissão dos casos de Covid-19 (ou novo coronavírus) ameaça levar ao colapso os sistemas de saúde de inúmeros países e submete um quarto da população mundial a algum tipo de quarentena. Em um mundo que crescentemente desconfiava das descobertas científicas, a pandemia recolocou as/os cientistas no centro do debate público e hoje espera ansiosamente que elas/eles produzam soluções para a crise. Até mesmo o presidente da maior potência bélica e econômica do mundo, Donald Trump, foi obrigado a rever seu negacionismo. É difícil antecipar se a legitimidade da pesquisa acadêmica sairá fortalecida dessa crise ou se ela apenas dará mais espaço para negacionismo, teorias conspiratórias e fake news. Fato é, contudo, que o fomento à ciência, à sua comunicação interna e divulgação para o grande público tornaram-se elemento estratégico central para o enfrentamento do problema.

Até o presente momento, grande parte dos países do Sul global, dentre eles o Brasil, vinha tendendo a importar parte dos critérios e práticas da estrutura estadunidense de fomento à ciência. A despeito de sua magnitude colossal e de seus inúmeros méritos, a pandemia vem revelando a insuficiência deste modelo. Isso se torna ainda mais evidente quando observamos as estratégias aparentemente bem-sucedidas, empregadas por outras nações como China e Coreia do Sul. Os EUA, por outro lado, talvez tenham sido o país com as maiores dificuldades de articular conhecimento científico e coordenação política na reação ao vírus. Algo que não se reflete apenas nas decisões volúveis e desastradas do seu principal líder, mas também no funcionamento de um sistema de organização das instituições científicas que se mostrou profundamente inábil para dar respostas rápidas a uma pandemia a despeito do seu tamanho, complexidade e dos vultosos recursos nele investidos.

Este texto elenca quatro lições que a pandemia causada pela Covid-19 já deixou para o modo como vínhamos orientando o fomento às ciências no mundo e, sobretudo, no Sul global. Em resumo, a crise insta e continuará instando vários países como o Brasil a (1) reverem suas políticas de internacionalização da produção científica, (2) enfrentarem a urgência de um programa de abertura da ciência para outras nações e para o público em geral, (3) constatarem a centralidade de instituições estatais de financiamento, coordenação e pesquisa conectadas ao Estado e (4) perceberem a indistinção entre o conhecimento gerado pelas ciências exatas e humanas para compreender, explicar e remediar a crise. Levar tais lições em conta é vital não apenas dada a crise, mas urgente haja vista as ações em curso nas agências de fomento nacionais como CAPES e CNPq, quase todas caminhando na contramão desses ensinamentos.

1) Paradoxos da política de internacionalização

No que toca à sua política de internacionalização da ciência, o Brasil tem seguido diretrizes que incentivam às publicações em inglês e em periódicos de impacto internacional. É evidente que o avanço do conhecimento científico é catalisado pela sua circulação para além dos contextos nacionais, o que depende da publicação na língua politicamente dominante no mundo contemporâneo. No entanto, não se pode perder de vista que a pesquisa acadêmica obedece a especificidades e urgências locais, fortemente marcadas pelas fronteiras dos Estados nacionais e suas especificidades linguísticas, algo que se tornou patente ainda no início da crise.

Na China, berço da pandemia que até então dava incentivos pesados à publicação em periódicos estrangeiros, houve uma reorientação do fomento. Três foram as razões principais para tal. Primeiro, o enorme tempo de avaliação dos manuscritos sobre a Covid-19 por parte de periódicos estrangeiros de renome estava atrasando a comunicação das pesquisas. Segundo, a busca por publicações em inglês também atrasava a divulgação às autoridades e à população locais de orientações práticas básicas sobre como lidar com o vírus, haja vista a demanda por ineditismo das revistas de alto impacto. Terceiro, a busca por periódicos estrangeiros de renome incentivava os cientistas chineses a se especializar em temas que já possuíam um interesse global prévio, algo que relegou à Covid-19 ao segundo plano das editorias científicas.

Por isso, a agência nacional chinesa de fomento à ciência optou por modificar suas diretrizes em meio à crise. Além de reorientar recursos para as pesquisas sobre o vírus, ela matizou os incentivos para a publicação em periódicos estrangeiros, substituindo-os pelo fomento à rápida divulgação das pesquisas em periódicos locais. Não se trata aqui de descartar ou secundarizar a publicação em inglês, mas de alterar a ordem de prioridades. Orientações e soluções para lidar com a pandemia só emergirão de um esforço global combinado, o que dependerá de uma comunicação científica ágil. No entanto, isso não nos deve cegar para o caráter eminentemente local e nacional das expressões dessa crise. Mais do que submeter os cientistas locais ao tempo e às agendas do mundo acadêmico anglófilo, temos que combinar incentivos à internacionalização com mecanismos nacionais de produção e disseminação do conhecimento. Hoje, é mais importante que uma descoberta sobre o vírus seja rapidamente comunicada aos pares imediatos e divulgada às autoridades e à população local do que submetida à lenta e onerosa avaliação de um periódico estrangeiro. Isso nos leva à segunda lição.

2) A Urgência de um Programa de Abertura da Ciência

Há mais de um século, o conhecimento científico é produzido e disseminado dentro de um modelo baseado na submissão de artigos acadêmicos à avaliação duplo-cega por pares e publicação em periódicos de alto impacto. Nesse modelo, resultados científicos estruturados são apresentados a periódicos acadêmicos que os submetem à avaliação de dois ou mais pareceristas anônimos. O duplo anonimato (de autores e pareceristas) é utilizado como expediente para garantir alguma imparcialidade no julgamento dos méritos e do rigor metodológico dos manuscritos, isolando dessa avaliação as eventuais preferências ou animosidades pessoais dentre os envolvidos.

Apesar de hegemônico e em certa medida indispensável, os atuais moldes da avaliação por pares tornam a comunicação científica lenta e restrita. As revistas acadêmicas podem demorar meses ou anos para atestar a relevância e o rigor metodológico de um manuscrito, atrasando a sua publicização, debate e teste. A isso se soma o fato de as principais revistas acadêmicas internacionais restringirem o acesso às suas plataformas às instituições e indivíduos que assinam os conteúdos das grandes editoras acadêmicas globais como Elsevier e Thomson & Reuters.

Uma alternativa a esse modelo é o chamado Programa da Ciência Aberta. Nesse conceito guarda-chuva estão incluídas novas práticas que priorizam a transparência e a celeridade na comunicação e na divulgação científica. Embora esse programa abarque inúmeras diretrizes, as mais importantes são a disponibilização dos manuscritos e dos dados por eles citados antes mesmo de sua avaliação (política de preprint) e a abertura total dos grandes repositórios de artigos (política de acesso aberto).

Em grande parte por conta de iniciativas como as plataformas SciELO e Redalyc, os países da América Latina foram pioneiros na adoção da política de acesso aberto e gratuito em detrimento da cobrança de assinaturas. Vale mencionar que as grandes editoras pagas já vinham migrando para esse modelo e, com a pandemia, vêm disponibilizando ao grande público de forma gratuita parte dos seus acervos. Por trás desse debate está também uma mudança nos procedimentos de financiamento das publicações científicas, que perderão os recursos provenientes das assinaturas e terão de ser sustentadas via editais públicos. Apesar de essa ser uma tendência na Europa, por exemplo, o Brasil vem restringindo substantivamente os recursos para seus periódicos, na contramão não apenas de uma onda global, mas também de nossas próprias políticas pregressas.

Mas a ampliação do acesso aberto ainda será insuficiente se o tempo de avaliação dos manuscritos permanecer alto, o que nos leva à importância dos incentivos a uma política de preprints e divulgação prévia de artigos ainda não avaliados. Nesse modelo, as revistas passariam a aceitar a submissão de textos já disponíveis em repositórios de preprints, abertos ao público e à avaliação de qualquer especialista interessado. Isso não apenas agiliza o debate acadêmico, mas também a divulgação científica, já que o público leigo também passa a ter acesso imediato aos estudos. Note-se que o incentivo ao uso dos repositórios de preprints não implica o fim da avaliação por pares, ao contrário: esta se tornará ainda mais importante dada a necessidade de ranquear os artigos abertos ao público de modo a traçar uma fronteira entre a boa e a má ciência.

O preço do modelo aberto de avaliação é o fim da avaliação duplo-cega haja vista que ao menos os pareceristas terão acesso à autoria dos textos submetidos. Contudo, trata-se de um pequeno preço a se pagar em momentos que se torna urgente a circulação do conhecimento científico, como no atual. Em tempos “normais”, deverá ficar a cargo dos/as cientistas a escolha pela submissão tradicional ou pelos servidores de preprint. De todo modo, os incentivos aqui têm de mudar, já que a maior parte do fomento ainda privilegia a publicação de artigos em periódicos fechados aos manuscritos oriundos de servidores de preprints.

3) A Centralidade das Instituições Estatais

Não existe um consenso quanto ao melhor modelo de financiamento e administração das instituições de pesquisa, se público ou privado. Além da enorme zona cinzenta entre esses dois polos, a verdade é que a maior parte dos países costuma adotar complexos modelos híbridos que combinam financiamento e administração pública e privada. De todo modo, as instituições públicas e governamentais parecem mais fundamentais do que nunca, ao menos no estágio atual da crise. Ainda que haja uma corrida global dos laboratórios privados em busca de uma vacina ou medicamento para mitigar os efeitos da Covid-19, eles não têm condições de financiar sozinhos tais pesquisas, agir em cooperação entre si e, sobretudo, fabricar em massa e distribuir suas descobertas. Ademais, embora o EUA contem com um número expressivo de laboratórios e institutos de pesquisa privados, o país vem sofrendo com a quase inexistência de institutos estatais próximos ao governo, capazes de organizar o conhecimento disponível e, eventualmente, complementá-lo com pesquisas próprias.

Um dos maiores gargalos na contenção da pandemia nos EUA tem sido, por exemplo, a autorização, distribuição e utilização dos testes. Embora eles venham sendo adquiridos em quantidades expressivas pelas diferentes instâncias do governo, sua aplicação está quase que totalmente nas mãos de hospitais privados que tendem a superestimar sua demanda e a distribuir os kits recebidos para seus clientes mais ilustres e abastados. A despeito das enormes dificuldades do sistema de pesquisa em saúde no Brasil, a existência de institutos governamentais como Fiocruz e IPEA, além dos vários departamentos nas universidades públicas, sobretudo de Epidemiologia e Saúde Coletiva, podem contribuir sobremaneira para melhorar a logística de autorização e distribuição desses testes de modo complementar à atuação dos laboratórios, hospitais e demais instituições privadas.

4) A Indistinção entre Ciências Humanas e Exatas

Para além da letalidade causada pelo novo coronavírus, é importante ressaltar que as pandemias condicionam e são condicionadas por variáveis políticas, sociais e econômicas. O que está em jogo no curto prazo é evitar o colapso do sistema de saúde a partir do incentivo ao isolamento físico e, no limite, do uso da quarentena. Todas as medidas nesse sentido envolvem a articulação de diferentes conhecimentos e a interdisciplinaridade.

Não é gratuito que a própria Epidemiologia seja hoje considerada uma ciência híbrida ou transdisciplinar. Isso porque a difusão do vírus não é causada apenas pelas suas características físico-químicas ou pelos suas vias de transmissão e efeitos no corpo. Ela é em grande medida influenciada pelos distintos padrões de interação social em contextos diversos, pela organização de nossas cidades, pela magnitude das nossas desigualdades socioeconômicas, pela organização dos mercados, pela história social de epidemias pregressas etc. Portanto, as ciências sociais e seus métodos específicos serão de fundamental importância. Novamente na contramão dessa lição, a CAPES ainda hoje insiste na exclusão das ciências humanas do rol de áreas consideradas “estratégicas” para o país, o que só demonstra sua cegueira para as dificuldades do presente.

Mas a articulação entre cientistas sociais e naturais será fundamental não apenas para a contenção imediata da pandemia. Independentemente do grau de pessimismo das projeções, fato é que o coronavírus fará parte de nossas vidas por muitos anos ainda, seja na hipótese de ele se tornar uma memória desagradável contida no passado, seja na conjectura de que sua difusão não se limitará aos meses vindouros. Em ambos os casos, teremos que aprender novas formas de organização e reprodução da vida social, tanto no que concerne ao atendimento de nossas necessidades materiais quanto às nossas demandas afetivas, cognitivas e existenciais. Em todos esses casos, o conhecimento produzido pelas ciências humanas e pelas humanidades será tão indispensável quanto às descobertas médicas.

Como citar este post

CAMPOS, Luiz Augusto. Quatro lições do coronavírus para o fomento à ciência no Brasil, Blog DADOS, 2020 [published 30 March 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/quatro-licoes