Valor Maravilha: Metamorfoses da Acumulação Capitalista no Espaço Portuário do Rio de Janeiro

Guilherme Gonçalves (Uerj); Sérgio Costa (Cebrap/Universidade Livre de Berlim)


Alardeado como vitrine internacional para realçar as atrações do Rio de Janeiro e a pujança do Brasil durante a copa do mundo de futebol de 2014 e os jogos olímpicos de 2016, o abrangente remodelamento da região portuária do Rio de Janeiro – Projeto Porto Maravilha – é, hoje, um pesadelo para todos os envolvidos. A Caixa Econômica Federal, que arrematou todos os títulos emitidos para financiar o projeto usando o dinheiro do FGTS, já admite que o negócio era inviável desde o começo e acumula um prejuízo de R$ 2 bilhões. A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP), empresa da Prefeitura do Rio de Janeiro, não consegue prestar os serviços estipulados por falta de recursos. As grandes construtoras responsáveis pelo projeto tornaram-se réus em diversas ações na justiça. Alguns políticos foram condenados e presos por irregularidades envolvendo o empreendimento.

No artigo “Valor Maravilha: Metamorfoses da Acumulação Capitalista no Espaço Portuário do Rio de Janeiro“, publicado em DADOS, vol.63, n.1, 2020, Guilherme Leite Gonçalves e Sérgio Costa mostram que, além de sintoma do fracasso da maior parceria público-privada (PPP) do país, o caso serve de laboratório para entender como funciona a dinâmica da acumulação do capital.  Mais do que isso, os autores mostram que o projeto Porto Maravilha é apenas a fase mais recente de uma longa trajetória histórica marcada pela mercantilização, desmercantilização e remercantilização da região portuária do Rio. O artigo é, assim, uma análise de longue durée da expansão capitalista que toma o porto e seu entorno como uma espécie de metonímia, um espaço-síntese das acumulações entrelaçadas que conectam o Brasil à economia global. A análise se inicia no período do colonialismo e da escravidão, atravessa o período desenvolvimentista e os esforços de industrialização pela substituição de importações e termina com a discussão sobre a financeirização.

A integração do porto do Rio de Janeiro ao proto-capitalismo global é inaugurada, simbolicamente, com a resolução de 1618 do então governador-geral da colônia Rui Vaz Pinto, que determina que só pessoas negras escravizadas a serviço de seu próprio irmão poderiam ser ocupadas no porto. O nexo com a acumulação do capital se aprofunda na medida em que o porto se transforma no maior mercado de pessoas escravizadas da história e porta de saída dos metais preciosos e produtos primários gerados na colônia.  A proibição do tráfico humano em 1850 e a abolição da escravatura em 1888 levam à reconfiguração das funções do porto e de seu entorno, na medida em que, a partir do final do Século XIX, um número significativo de negros libertos passa a residir nas regiões próximas ao porto. Nasce, então, o que Heitor dos Prazeres chamou de “Pequena África”, espaço social de resistência e de produção de expressões culturais afro-brasileiras.

Durante o século XX, o porto vai perdendo sua importância no âmbito da acumulação capitalista industrial e do deslocamento do protagonismo econômico para São Paulo. Além do mais, obras viárias como a Avenida Presidente Vargas e o Viaduto Perimetral passam a funcionar como barreiras físicas que separam a região portuária dos novos polos dinâmicos da cidade. Já no século XXI, valendo-se dos instrumentos do capitalismo financeiro, o projeto Porto Maravilha busca reconectar a área ao fluxo global do capital.  Os termos da acumulação, hoje, são outros. O uso da violência, as remoções da população local, a expropriação dos trabalhadores e a espoliação dos recursos públicos, contudo, são uma constante em todos estes séculos de acumulação entrelaçada no espaço do Porto do Rio de Janeiro.

 

Referências

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Para ler o artigo, acesse:

GONÇALVES, Guilherme; COSTA, Sérgio. (2020), “Valor Maravilha: Metamorfoses da Acumulação Capitalista no Espaço Portuário do Rio de Janeiro”. Dados, vol. 63, no. 1. DOI: 10.1590/001152582019193. Available from: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582020000100203

Links externos

Dados – Revista de Ciências Sociais: www.scielo.br/dados

Como citar este post

GONÇALVES, Guilherme; COSTA, Sérgio. (2020), Press Release DADOS, “Valor Maravilha: Metamorfoses da Acumulação Capitalista no Espaço Portuário do Rio de Janeiro”. Blog DADOS, [published 1 December 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/metamorfoses-da-acumulacao-espaco-portuaria/

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