O IBGE e a privacidade dos dados pessoais

Simon Schwartzman


Obrigado a adiar o Censo de 2020 por causa da epidemia do novo coronavírus, e impedido de fazer a coleta de dados de porta em porta da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conseguiu que o governo editasse uma Medida Provisória (MP) determinando que as companhias de telefonia passassem ao instituto suas listas de nomes, endereços e telefones, para permitir que as pesquisas pudessem ser feitas por ligações telefônicas. Havia pressa, porque já estamos no final de abril, e é a PNAD que proporciona informações mensais sobre emprego, renda, ocupação, condições de vida e outras coisas. Neste ano, deve trazer também um suplemento sobre o impacto da Covid-19. A MP 954 provocou grande reação em pessoas e instituições temerosas que o IBGE pudesse fazer mau uso da posse destas informações. Partidos políticos e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entraram na justiça e conseguiram que a juíza Rosa Weber concedesse uma liminar sustando o acesso do IBGE aos dados.

Para entender melhor do que se trata a questão, é preciso saber que o IBGE, com a finalidade de realizar o Censo Demográfico, já estava organizando uma ampla listagem dos nomes e endereços da população brasileira, obtidos por diversas fontes diretas e indiretas. O Censo Demográfico, além de dar as informações usadas no cálculo da distribuição dos recursos do Fundo de Participação de Estados e Municípios (FPE), define o universo que serve de base para a amostra da PNAD, que ainda se baseia no Censo de 2010.  Com a suspensão do Censo de 2020, o IBGE precisa de uma listagem atualizada de informações sobre a população brasileira, que já vinha preparando, para ajustar a amostragem e fazer a PNAD por telefone, já que não será possível conduzir as pesquisas da forma tradicional, de porta em porta.

A Lei n. 5534, de 1968, determina que a prestação de informações de pessoas físicas e jurídicas no Brasil ao IBGE é obrigatória. Em tese, todos precisam responder às solicitações do instituto, embora, que eu saiba, nunca ninguém tenha sido punido por se negar a cooperar. Contando com a boa vontade da população e a colaboração de outros órgãos de governo, o IBGE mantém um cadastro permanentemente atualizado de todas as empresas brasileiras, com nome, CGC, faturamento e tipo de atividade, usado para suas pesquisas regulares sobre a economia nacional, que são a base para o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB).

Os dados que o IBGE está solicitando agora só complementariam os que o Instituto já possui, com a vantagem de permitir a pesquisa por telefone, que se tornou indispensável no presente contexto.  O objetivo do convênio do IBGE com o Ministério da Saúde não é substituir as pesquisas epidemiológicas do Ministério, baseada em testes, mas sim avaliar o impacto social e econômico da epidemia sobre os diversos segmentos da população e regiões do país. Isto pode ser feito com perguntas sobre a condição de saúde das pessoas, assim como do falecimento de familiares, como se faz normalmente.

“Ah, mas este governo não é confiável, o IBGE pode usar estes dados para manipular as pessoas, ou produzir uma versão brasileira do Cambridge Analytica que ajudou a campanha do Trump”.  A prevalecer este argumento, será melhor então fechar o IBGE, e também a Receita Federal, que detém uma base de dados bastante completa de todas as informações econômicas da população brasileira, sem falar de outras bases de dados como o Cadastro Único que agora está sendo usado e complementado para administrar o Bolsa Família e outros programas sociais do governo.

Existem outras bases de dados importantes com informações individualizadas, como as do Ministério da Educação, com mais de 50 milhões de estudantes e professores, e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, com dezenas de milhões de nomes. Se o IBGE pode usar mal os dados, por que não os outros? Vamos fechar todos? E o que fazer com as 3 ou 4 companhias telefônicas que já têm estes dados em mãos? E as companhias de eletricidade, que dispõem dos endereços de todos os domicílios? Sem falar, claro, no Facebook e WhatsApp, que deveriam ser proibidos.

O fato é que agências de estatística pública necessitam de cadastros atualizados de empresas e pessoas para funcionar. Em muitos países da Europa Ocidental, estes dados, sempre atualizados nos registros administrativos, são integrados e permitem um acompanhamento permanente das condições econômicas e sociais da população, dispensando os censos decenais e reduzindo ao mínimo a necessidade de bater à porta das pessoas pedindo informações adicionais. O IBGE tem a obrigação legal e uma tradição sólida de proteger as informações individuais e de empresas que detém, e isto não seria diferente com as listas telefônicas.

O atendimento à preocupação com a proteção da privacidade dos dados individuais deve ser feito pelo fortalecimento e blindagem das instituições responsáveis pela administração e uso dos dados, aperfeiçoando os sistemas de proteção de informações individuais, e não por sua mutilação. Desde que dirigi o IBGE na década de 90, venho dizendo que o Instituto não pode continuar a ser uma simples repartição do Ministério do Planejamento ou da Economia, mas precisa trabalhar sob a supervisão de um Conselho Diretor formado por representantes do governo, da comunidade científica e da sociedade, e um presidente aprovado pelo legislativo e com mandato definido por lei. Este Conselho Diretor é essencial para orientar e supervisionar o trabalho do Instituto, e também protegê-lo de eventuais interferências externas.

Seria ótimo se o atual debate sobre o acesso às listas telefônicas pudesse abrir a oportunidade para dar ao IBGE o formato institucional que ele necessita, como dito acima.

Como citar este post

SCHWARTZMAN, Simon . O IBGE e a privacidade dos dados pessoais. Blog DADOS, 2020 [published 28 April 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/ibge-privacidade

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