O que os registros de homicídios nos ensinam sobre os dados de mortalidade por Covid-19

Ludmila Ribeiro (UFMG) e Valéria Oliveira (UFMG)


No último mês, fomos tomados por uma avalanche de incômodas novidades sem precedentes na história recente da humanidade. A partir da confirmação do primeiro caso, em 26 de fevereiro, o Brasil ingressava, com algum atraso, na dinâmica de atualização diária do número de vítimas da Covid-19. A menor magnitude dos números, em comparação aos verificados em outros países do mundo, fez com que vários acreditassem que “Deus é mesmo brasileiro”, pois não “pegamos doenças” e nem morremos com a mesma facilidade que outros indivíduos, afinal, “pulamos no esgoto” e não acontece nada. Será mesmo?

A desconfiança em relação aos números oficiais indica que a imprensa parece ter descoberto um problema para o qual os pesquisadores da área de segurança pública há muito chamam a atenção: a dificuldade em se atestar algumas causas de morte no Brasil. Segundo as próprias autoridades de saúde, os números da Covid-19 replicados diariamente nos meios de comunicação estariam muito aquém da realidade em função da falta de precisão para indicar as razões dos óbitos.

Esse é um velho desafio para os pesquisadores de segurança pública que se debruçam sobre os assassinatos que vitimaram uma média de 141 pessoas por dia em 2018, número que já foi superado pela quantidade diária de óbitos por Covid-19. Para nós, a magnitude do problema é tamanha que muitas vezes optamos por trabalhar com categorias mais amplas, como a de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), adotada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), dadas as dificuldades em classificar corretamente a morte provocada por outra pessoa.

No caso dos homicídios, temos duas instituições – as Secretarias de Segurança e as Secretarias de Saúde – produzindo registros sobre as causas desses incidentes, com vistas a permitir a produção de estatísticas para finalidades diversas: a abertura de processos penais no primeiro caso e a consolidação dos números de mortalidade por causas externas no segundo. Em que pese a melhor qualidade dos dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, há tempos alguns problemas são destacados por pesquisadores da área[1]. 

Inicialmente, cabe ao médico legista interpretar as evidências que lhe são apresentadas para atestar qual foi a causa da morte[2]. Para além das marcas deixadas por projéteis de arma de fogo, por exemplo, é preciso analisar a localização desses elementos no corpo, o que pode ser determinante para a diferenciação entre suicídio e homicídio. Isso significa dizer que, apesar da existência de formulários padronizados (como a Declaração de Óbito), é a interpretação do médico que irá orientar o preenchimento dos campos do documento e chancelar a causa da morte naquele cadáver que lhe foi apresentado[3]. O que fazer quando as informações apresentadas ao médico são incompletas?

No caso das mortes intencionais, o Sistema de Classificação Internacional de Doenças (CID) tem uma categoria chamada “causas externas indeterminadas”, na qual são registrados os casos de dúvida. Como demonstram algumas análises, essas mortes “desconhecidas” são tão semelhantes àquelas codificadas como “homicídios”[4] que em muitas situações é possível somar as duas categorias para a produção de uma medida mais acurada da quantidade de assassinatos ocorrida em um ano no Brasil[5]. Ou seja, talvez elas não sejam tão desconhecidas, mas resultam da dificuldade dos profissionais em ter a sua disposição insumos – informacionais, químicos, e até mesmo humanos –  para uma melhor classificação da morte. E, como não poderia deixar de ser, são visíveis os vieses socioeconômicos relacionado à qualidade da investigação dos homicídios ou crimes violentos letais intencionais[6], sendo que a subnotificação é ainda maior nas regiões onde a privação econômica também é mais aguda.

Na tentativa de melhorar a qualidade dos dados, as secretarias de saúde lançam mão de técnicas de conferência bastante complexas, que geralmente atrasam em um ano a produção de informações sobre mortes por causas externas – há um longo processo de preenchimento de documentos entre a detecção do cadáver e a inserção dos dados no SIM/DATASUS. Em 2019, analisamos os dados de 2017, após uma miríade de totalizações e revisões, destacadas no Atlas da Violência. O que essa história nos ensina sobre a Covid-19?

Ela nos ensina que é muito difícil construir informações válidas e acuradas sobre mortes quando as Declarações de Óbito são preenchidas, inicialmente, sem balizas claras sobre qual código deve ser inserido na “causa da morte”[7]. Se torna mais complexa quando há dúvidas sobre como essa deve ser interpretada a partir da percepção que o profissional da área médica faz do cadáver, sem que haja resultados de exames e testes. Se não há elementos no histórico do paciente, ou se a família não é capaz ou não está presente para informar os sintomas anteriores, o caso pode não ser interpretado como suspeito do novo coronavírus. Com isso, o cadáver não será testado de forma a verificar a presença de anticorpos do vírus e, desta maneira, tal óbito não entrará nas estatísticas de mortalidade. 

Como bem destaca Daniel Cerqueira, “a pedra angular para garantir a acurácia e o preenchimento correto da causa básica da mortalidade consiste na qualidade do exame pericial do médico legista que, por sua vez, depende: das condições materiais de trabalho; do treinamento e atualização dos profissionais junto a instituições científicas; e da coleta de informações precisas sobre a cena em que o incidente ocorreu”. Não seria exagero afirmar que no Brasil nenhum desses requisitos é satisfatoriamente cumprido”[8]. No caso da Covid-19, os insumos necessários não são produzidos no Brasil e, assim, os testes se tornam ainda mais inacessíveis aos que não podem pagar para ser testados em laboratórios privados ou aos internados em hospitais públicos. 

Se os homicídios têm a “morte suspeita”, uma categoria que há muito é utilizada pelas polícias para os casos que ainda precisam ser investigados para se verificar se houve assassinato[9], o novo coronavírus conta com algo semelhante que são as “mortes sem causa confirmada”. São aquelas para as quais se esperam os resultados dos testes ou a verificação de outras causas de morbidade que podem ter levado àquele óbito em detrimento da Covid-19. No caso das mortes por causas externas, as rotinas das secretarias de saúde são empreendidas ao longo de um ano para que as “suspeitas” possam ser verificadas e, dessa maneira, contabilizadas de forma mais propícia[10]. No novo coronavírus, não temos a oportunidade de esperar um ano por uma estatística “um pouco mais confiável” e, em nome da urgência, repetimos todas as lições que insistimos em não aprender com a contabilidade dos homicídios. 

O quadro abaixo apresenta um comparativo entre os dois problemas que verificamos no registro das causas dessas mortes.

 

Problemas no registro de homicídios Problemas no registro da Covid-19
Os Institutos Médicos Legais sofrem com a falta de pessoal e insumos na maior parte do Brasil. Insuficiência de insumos para a produção de testes (nem todos os casos serão testados).
A polícia científica nem sempre consegue levantar imediatamente as informações no local do óbito.  Demora na divulgação dos resultados dos testes realizados (o número de testes extrapola a capacidade dos laboratórios públicos e privados).
Pode haver mais de um tipo de crime associado a uma morte violenta e as motivações para esta ou aquela classificação perpassam elementos técnicos (ausência de informações) e políticos.  Existem causas associadas de óbito (comorbidades),
A qualidade do registro não é prioridade em um cenário de sobrecarga de trabalho das secretarias de saúde e das polícias (militar, científica ou civil). A qualidade do registro da causa da morte pelo médico é baixa e diminui à medida em que os casos aumentam.
A conferência feita pelas secretarias de saúde e polícias pode mudar o número pela reclassificação das mortes suspeitas em homicídios, refletindo o passado.  Os resultados dos testes ainda não divulgados podem interferir na percepção de que o número de casos aumenta em um momento futuro, quando refletem o passado e já não auxiliam tanto no planejamento das ações de enfrentamento à doença.

 

O que não aprendemos com os homicídios é que precisamos criar mecanismos mais eficientes de troca de informação entre os diversos profissionais que atuam no diagnóstico da causa mortis para que a boa classificação possa acontecer. Mais do que gerar uma categoria como “mortes suspeitas” equivalente às “causas externas desconhecidas” precisamos suprir os profissionais de linha de frente com melhores insumos e equipamentos que permitam um diagnóstico mais adequado e rápido do óbito. 

O que não aprendemos com os homicídios, ademais, é que necessitamos de reagentes e testes bioquímicos de melhor qualidade nos institutos médicos legais para que eles possam, consequentemente, fazer perícias de melhor qualidade. Tal fator é importante não apenas para ajudar na elucidação das mortes violentas, mas também para que esses institutos não fiquem na berlinda em contextos de pandemia, nos quais os recursos escassos se tornam artigos de luxo mais disputados. Caso contrário, na tentativa de diminuir os riscos de contaminação dos legistas e sua equipe em um cenário de precariedade, acabam aceitos procedimentos que dificultam ainda mais a classificação das mortes. É o caso da Resolução SS-32 que dispõe sobre as diretrizes para manejo e determinação dos casos de óbito no contexto da pandemia de Covid-19, publicada pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em 20 de março de 2020. Entre outras medidas, o documento desobriga a realização de autópsias para as mortes naturais no Estado e orienta que somente os casos com exames laboratoriais que confirmem a infecção sejam classificados como mortes causadas por Covid-19. Os demais serão indicados como “suspeitos” ou com quadro de Síndrome Respiratória Aguda Grave a esclarecer.  

Mas o que definitivamente não aprendemos com o fluxo de registro de homicídios é que as fragilidades na produção de informações qualificadas impedem o desenvolvimento de políticas públicas de qualidade. Os pesquisadores da área de segurança pública repetem esse mantra há vários anos, mas as autoridades públicas continuam a ignorar. Talvez seja por isso que temos hoje uma das maiores taxas de homicídio do mundo e nossas políticas estão sempre aquém do que poderiam ser porque nos faltam dados de maior exatidão.

No caso da pandemia, tomamos como realidade os números limitados que têm sido produzidos sobre o novo coronavírus e orientamos as discussões sobre distanciamento social e reabertura do comércio a partir de dados que não são confiáveis porque faltam recursos materiais para melhores diagnósticos. No ímpeto de usar as estatísticas produzidas “em tempo real”, gera-se um quadro incompleto dos efeitos da Covid-19 no Brasil, o que pode, inclusive, suscitar a implementação de políticas que irão expor a população a efeitos deletérios. 

O problema de interpretações apressadas do avanço da pandemia entre os brasileiros pode ser minimizado pela abertura dos dados sobre os casos confirmados e, principalmente, os suspeitos. Quanto mais informações sobre a distribuição espacial e o perfil das pessoas mortas, mais ferramentas estarão disponíveis para estimar o tamanho da diferença entre casos confirmados e suspeitos. De certa forma, com algumas limitações, isso permitirá antecipar as regiões de maior incidência entre as cidades mais afetados do país.

A discussão sobre os impactos administrativos e até políticos da subnotificação abre caminho para nosso último paralelo com o registro dos homicídios. No campo da segurança pública, uma boa ilustração para as consequências do monitoramento da criminalidade e seu efeito sobre a rotina dos órgãos de segurança pública é uma cena bastante conhecida do filme Tropa de Elite (2007)[11]. Nela, o Comandante do Batalhão exige explicações de um Capitão, responsável pelo policiamento, para o grande número de mortes identificadas na área de atuação do grupo. Contrariando as orientações do superior, o Capitão havia contabilizado as mortes dentro de sua jurisdição e o analista identificou o fato ao construir a “numerologia”, como diz o personagem do Comandante, ou a estatística criminal.  “É mais fácil mudar o local dos corpos que encontrar os criminosos”, nos informa o narrador. Ali o que se revela é a criação de mecanismos informais e/ou ilegais para que se transfira a responsabilidade sobre o encaminhamento do ocorrido de uma unidade para outra. A subnotificação se presta a ocultar a verdadeira distribuição dos episódios no território.  

Em relação à Covid-19, é bastante possível que existam problemas dessa natureza. Não é difícil imaginar que o baixo número de infectados e mortos represente bom argumento para gestores que defendem a retomada das atividades produtivas, por exemplo. Porém, não acreditamos ser essa a maior causa de subnotificação, como também não ocorre com os homicídios. O ciclo de produção da informação na administração pública envolve muitas etapas e, nesse caso, a ineficiência parece ser o ponto-chave para a subnotificação. Os problemas começam na compra dos insumos (testes, equipamentos de proteção individual etc.), passam pelos empecilhos na contratação e mesmo na construção das escalas de trabalho dos profissionais nos hospitais e Institutos Médicos Legais e deságua nas dificuldades já apontadas de interpretação para seguir os protocolos de classificação dos óbitos. 

Em termos de perspectivas para ações de enfrentamento à Covid-19 em um futuro próximo, o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, em sua primeira fala ao ser anunciado como o novo titular da pasta em 16 de abril, mencionou a necessidade da criação de um “programa de testes”. Segundo ele, a iniciativa permitiria conhecer de verdade a doença e, assim, intervir de maneira mais estratégica. Sem dúvida, essa é uma ação indispensável para reduzir a subnotificação de mortes pela doença no Brasil, porém, ainda não foram divulgados detalhes sobre o desenho e o cronograma de execução dessa nova frente de trabalho.

Não se trata de fazer uma escolha de Sofia: usar os parcos recursos que dispomos apenas para comprar testes e resolver o problema do diagnóstico das mortes por Covid-19. Trata-se de entender que existe um gargalo crônico no fluxo de registro de óbitos no Brasil, que impacta sobremaneira qualquer ação concertada entre os entes federados. Se a pandemia do novo coronavírus nos permitirá colher resultados sustentáveis também para os registros de mortalidade no país, só o futuro dirá.

 

Notas

[1] Nesse sentido, ver: CERQUEIRA, Daniel. (2012), “Mortes violentas não esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro”. Econ. Apl. [online]. v.16, n.2, p.201-235.

[2] Tal como destacado na seguinte análise: Borges, D., Miranda, D., Duarte, T., Novaes, F., Ettel, K., Guimarães, T., & Ferreira, T. (2013), “Mortes violentas no Brasil: uma análise do fluxo de informações”. BRASIL. Ministério da Justiça. Homicídios no Brasil: Registro e Fluxo de Informações. Brasília: Coleção Pensando a Segurança Pública, 1.

[3] Como analisado por PLATERO, Klarissa; Vargas, Joana. (2017), “Homicídio, suicídio, morte acidental…’O que foi que aconteceu?'”. Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v.10, n.3, p.621-641.

[4] Na Classificação internacional de doenças (CID),os homicídios são as agressões que recebem os código X85 a Y09, como indicam SOUZA, Tiago; SOUZA, Edinilsa; PINTO, Liana. (2014), “Evolução da mortalidade por homicídio no Estado da Bahia, Brasil, no período de 1996 a 2010”. Ciência & Saúde Coletiva, v.19, p.1889-1900.

[5] Como indicam os resultados de MURRAY, Joseph; CERQUEIRA, Daniel; KAHN, Tulio. (2013), “Crime and violence in Brazil: Systematic review of time trends, prevalence rates and risk factors”. Aggression and violent behavior, v.18, n.5, p.471-483.

[6] Nesse sentido, ver: IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA; FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da Violência, 2016. Brasília: Ipea; FBSP, 2016. (Nota Técnica, n. 17).

[7] As orientações para preenchimento da Declaração de Óbito em caso de Covid-19 no estado de São Paulo são excelentes exemplos deste fenômeno. Nesse sentido, ver aqui.

[8] CERQUEIRA. Op. Cit., p.204.

[9] Como destacam Misse et al (2013: p. 258). “Fluxo do trabalho de perícia nos processos de homicídio doloso no Rio de Janeiro”. BRASIL. Ministério da Justiça. Homicídios no Brasil: Registro e Fluxo de Informações. Brasília: Coleção Pensando a Segurança Pública, 1.

[10] Um bom exemplo de como essa revisão e reclassificação ocorre pode ser vislumbrado em Lima, Cristiane do Socorro Loureiro, Gustavo Camilo Baptista e Isabel Seixas de Figueiredo, eds. (2014), Avaliações, diagnósticos e análises de ações, programas e projetos em segurança pública. Ministério da Justiça.

[11] PADILHA, José. Tropa de Elite. Rio de Janeiro, RJ, 2007. Zazen Produções.

Como citar este post

RIBEIRO, Ludmila; OLIVEIRA, Valéria. O que os registros de homicídios nos ensinam sobre os dados de mortalidade por Covid-19. Blog DADOS, 2020 [published 17 April 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/registros-homicidios/

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