O conservadorismo mata as mulheres?

Victor Araújo (University of Zurich, UZH) e Malu A. C. Gatto (University College London, UCL)


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Uma consequência normativamente esperada em democracias representativas é a aproximação entre as demandas do eleitorado e as políticas públicas implementadas por aqueles eleitos para governar (Lax and Phillips 2012). O mecanismo que explicaria isso é simples: uma vez eleitos, os representantes teriam interesse em maximizar o bem-estar dos representados em troca de votos nas eleições seguintes. Por isso, em democracias, espera-se que os políticos adotem um programa de governo que se aproxime da preferência majoritária do eleitorado.

Mas o que acontece quando o anseio da maior parte dos eleitores coloca em risco a vida de minoriais (e.g., Indígenas e LGBTQ+) ou maiorias minorizadas (Mulheres e Negros)? Por exemplo, imagine um cenário em que a maior parte dos eleitores é conservadora e contrária à adoção de políticas de combate à violência contra a mulher. Neste cenário, a decisão de implementar políticas públicas seria orientada exclusivamente por um cálculo eleitoral ou seria a demanda da maioria sobrestada pela necessidade de proteger um grupo vulnerável? É essa pergunta que tentamos responder no artigo “Can conservatism make women more vulnerable”, recentemente aceito para publicação no periódico acadêmico Comparative Political Studies (CPS).

No mundo, cerca de 35% das mulheres já foram vítimas de violência praticada por seus parceiros (García-Moreno et al, 2013). No Brasil, uma mulher é vítima de violência a cada quatro minutos (Cerqueira et al, 2019).

Esses números alarmantes têm levado muitos países ao redor do mundo a adotar legislações de proteção às mulheres. Em 2020, mais de 155 países já contavam com alguma lei ou medida de combate à violência contra as mulheres (World Bank, 2020). No Brasil, alguns esforços nesse sentido começaram já na década de 1980, mas ganharam abrangência e se materializaram em 2006, quando o Projeto de Lei 11.340 foi aprovado. Além de reconhecer e tipificar diferentes formas de violência doméstica, a Lei Maria da Penha identificou mecanismos de justiça e proteção e recomendou a adoção de tais instrumentos pelos municípios brasileiros.

A Tabela 1 lista esses instrumentos e a frequência com que são adotados no nível local. Como pode ser visto, muitos municípios optam por não implementar os mecanismos de justiça e proteção recomendados pela Lei Maria da Penha. Mais de 70% dos municípios não adotam sequer um instrumento de proteção (e.g., Serviços especializados de atendimento à violência sexual). Do mesmo modo, não existem instrumentos de justiça (e.g., Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres) em cerca de 90% dos municípios brasileiros. O que explica essa opção dos políticos locais por não implementarem políticas que possam prevenir e/ou lidar com a violência contra as mulheres?

Tabela 1: Instrumentos de combate à violência contra a mulher no Brasil

Tipo Descrição do instrumento N %
Proteção Conselho Municipal de Direitos da Mulher 1313 23.58
Proteção Centro Especializado de Atendimento à Mulher 385 6.91
Proteção Casas-Abrigo 134 2.41
Proteção Serviços Especializados de Atendimento à Violência Sexual 540 9.7
Justiça Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres 460 8.26
Justiça Juizado ou Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher 250 4.49
Justiça Promotorias Especializadas/Núcleos de Gênero do Ministério Público 188 3.38
Justiça Defensorias da Mulher ou Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher 87 1.56
Justiça Patrulha Maria da Penha 182 3.27
Justiça Serviço de Responsabilização do Agressor 113 2.03
Municípios sem nenhum instrumento de proteção 3901 70.06
Municípios com 1 instrumento de proteção 1174 21.08
Municípios com 2 instrumentos de proteção 328 5.89
Municípios com 3 instrumentos de proteção 119 2.14
Municípios com mais de 3 instrumentos de proteção 46 0.83
Municípios sem nenhum instrumento de justiça 4902 88.04
Municípios com 1 instrumento de justiça 349 6.27
Municípios com 2 instrumentos de justiça 163 2.93
Municípios com 3 instrumentos de justiça 71 1.28
Municípios com mais de 3 instrumentos de justiça 83 1.49

 

Fonte: elaborado pelos autores com base nos dados do MUNIC (IBGE, 2018).

 

Partindo do pressuposto de que políticos desejam ganhar eleições e que, para tanto, buscam adotar um programa de governo que seja responsivo aos seus eleitores, testamos a hipótese de que políticas de proteção às mulheres são menos prováveis em municípios com um eleitorado mais conservador. Nesse caso, assumimos que os eleitores conservadores, aqueles que tendem a votar em candidatos e partidos à direita do espectro ideológico, são mais resistentes à adoção de políticas de proteção às mulheres. E por esse motivo, nos municípios onde os eleitores conservadores são maioria, os políticos locais teriam poucos incentivos para implementar a Lei Maria da Penha em sua integralidade.

Testamos essa hipótese de duas formas. Em primeiro lugar, usamos dados de nível municipal para examinar se existe alguma correlação entre o nível de conservadorismo do eleitorado e o número de instrumentos implementados para combater a violência contra as mulheres. Para tanto, utilizamos o índice de conservadorismo eleitoral construído por Power e Rodrigues (2019). Os instrumentos listados na Tabela 1 foram utilizados para a construção de um índice que varia de 0 a 10; onde 0 significa que nenhuma política de combate à violência contra as mulheres foi adotada e 10 significa que todas foram implementadas em um dado município.

A Figura 1 apresenta nossos resultados principais. Mesmo quando controlamos pelas características dos políticos locais e por diversos outros fatores de nível municipal, nossos modelos estatísticos sugerem que prefeitos eleitos por eleitorados conservadores optam por implementar um número menor de instrumentos de combate à violência contra as mulheres. Esse resultado é especialmente forte no caso dos instrumentos de proteção (Painel B), políticas fundamentais para garantir a proteção e a integridade das sobreviventes de violência física e psicológica.

Figura 1: Relação entre o número de instrumentos de combate à violência contra as mulheres e o nível de conservadorismo do eleitorado nos municípios brasileiros

Nota: A unidade de análise é o município (N = 5.540).  O índice conservadorsimo varia entre -1 (se nenhum eleitor é conservador) e 1 (se todos os eleitores são conservadores). Os resultados reportados na Figura 1 são derivados de modelos de mínimos quadrados ordinários com erros clusterizados no nível do município. Os seguintes controles foram incluídos nos modelos: taxa de feminicídio, % de mulheres na população, % da população vivendo em áreas urbanas, % da população autodeclarada evangélica, log do tamanho da população, índice de desenvolvimento humano, qualificação da burocracia, gênero, ideologia e religião dos prefeitos e vereadores eleitos entre 2004 e 2016. Mais detalhes sobre a operacionalização das variáveis estão disponíveis na publicação original. O painel A considera todos os instrumentos apresentados na Tabela 1. O painel B considera apenas os instrumentos de proteção, enquanto o painel C considera os instrumentos de justiça.

 

Mas como saber se o conservadorismo do eleitorado se traduz de fato em menor suporte às políticas de proteção às mulheres? Um pressuposto dos testes discutidos acima é que eleitores conservadores tendem a se opor à adoção de políticas de combate à violência contra as mulheres. No entanto, os eleitores frequentemente são conservadores em uma dimensão e progressistas em outras. Por exemplo, um dado eleitor pode ser conservador em dimensões socioculturais e, ao mesmo tempo, ser progressista em relação à economia. Neste caso, importa saber se os indivíduos mais conservadores são, de fato, menos propensos a apoiar políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.

Como dados agregados não permitem responder de forma adequada essa questão, utilizamos uma pesquisa de opinião, realizada em abril de 2019, e que entrevistou 2.086 indivíduos em todos os estados brasileiros. De posse desses dados, criamos um índice de conservadorismo individual baseado nas seguintes perguntas:

1) Você se considera feminista e/ou apoia o feminismo?

2) Você é a favor ou contra que o Brasil receba refugiados da Venezuela?

3) Quanto mais pessoas presas, mais segura estará a sociedade?

O índice varia entre 0 e 3. Foram classificados como zero (i.e., não são considerados conservadores) em nosso índice aqueles indivíduos que apoiam o feminismo, que são a favor do acolhimento de refugiados da Venezuela no Brasil e que são contra uma política de encarceramento em massa.

Em nosso estudo, investigamos se o modo como os indivíduos são classificados nesse índice afeta a opinião dos mesmos sobre os seguintes temas relacionados à violência contra as mulheres:

1) A violência contra a mulher aumentou no Brasil no último ano.

2) As leis no Brasil são adequadas para proteger as mulheres.

3) A imprensa exagera na exposição dos casos de violência contra a mulher.

A Figura 2 reporta os principais resultados dos nossos modelos estatísticos. Os indivíduos mais conservadores, aqueles que receberam valores maiores no nosso índice de conservadorismo, são mais propensos a acreditar que as leis existentes são suficientes para proteger as mulheres. Na mesma direção, os mais conservadores são também mais propensos a acreditar que a imprensa exagera na exposição dos casos de violência contra a mulher. Esses resultados sugerem que o conservadorismo reduz o apoio às políticas de combate à violência contra as mulheres. Esses achados também reforçam a validade das nossas evidências de nível municipal. Em geral, os políticos locais, antecipando que a proteção às mulheres é uma pauta impopular entre os eleitores, adotam uma estratégia deliberada de não implementar medidas de proteção às mulheres.

Figura 2: Relação entre conservadorismo e percepções sobre violência contra as mulheres

Nota: A unidade de análise é o indivíduo (N = 1949). Os resultados reportados na Figura 2 são derivados de modelos de regressão logística com erros clusterizados no nível do indivíduo. Aqueles que disseram concordar muito ou concordar em parte com cada uma dessas afirmações (painel A, B e C) foram classificados como 1 em nosso banco de dados, e caso contrário como 0 (zero). Os seguintes controles foram incluídos nos modelos: gênero, raça, escolaridade, renda, religião, preferência partidária e tamanho do município de moradia do respondente para ajustar os modelos estatísticos.

 

Pesquisas anteriores sugerem que a ideologia dos políticos importa pouco para a formulação de políticas de proteção às mulheres (e.g., Beer, 2017). Isso ocorreria porque esse é um tema que suscita acordos mínimos, fazendo com que mesmo partidos de direita e com plataformas eleitorais conservadoras não se oponham ao avanço da legislação nessa área (Htun e Weldon, 2017). No entanto, nossos resultados sugerem que o conservadorismo pode reduzir substanticialmente os incentivos para uma efetiva implementação das legislações existentes.

Por meio de análises adicionais que interagem o nosso índice de conservadorismo com o gênero do respondente, também encontramos que esses resultados são puxados pelos homens: na nossa amostra, os homens são mais conservadores que as mulheres e, consequentemente, mais propensos a concordar que as leis existentes são suficientes para proteger as mulheres. Em contrapartida, quando o assunto é violência contra as mulheres, as atitudes das mulheres conservadoras se aproximam mais das preferências das mulheres progressistas do que dos homens conservadores. Esses resultados indicam que a não adoção no nível local de instrumentos de combate à violência contra as mulheres é, em grande medida, uma resposta às preferências dos eleitores homens.

Nossos achados contribuem para um importante debate em curso sobre o impacto potencial do aumento do conservadorismo sobre os direitos das mulheres em todo o mundo (e.g., Biroli e Caminotti, 2020). Da mesma forma que o Brasil, outros países – incluindo Argentina, França, Alemanha, Índia, México, Polônia, Suíça e os Estados Unidos – também oferecem contextos onde os governos locais podem ter altos níveis de discricionariedade sobre a formulação e implementação de políticas (Ladner et al., 2016) e onde o aumento do conservadorismo pode se traduzir no aumento do número de mulheres vítimas de violência.

 

Referências

BEER, Caroline. (2017), “Left parties and violence against women legislation in Mexico.Social Politics:International Studies in Gender”. State & Society, vol.24, n.4, p.511–537.

BIROLI, Flávia; CAMINOTTI, Mariana. (2020). “The conservative backlash against gender in latin america”.Politics & Gender, vol.16, n.1.

CERQUEIRA, Daniel. et al. (2019), Atlas da violência 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

GARCIA-MORENO, Claudia. et al. (2013), Global and regional estimates of violence against women: Prevalence and health effects of intimatepartner violence and non-partner sexual violence. World Health Organization.

HTUN,  Mala; WELDON,  S. Lauren. (2010), “When do governments promote women’s rights?   Aframework  for  the  comparative  analysis  of  sex  equality  policy”. Perspectives  on  Politics,vol.8, n.1, p.207–216

LAX, Jeffrey R.; PHILLIPS, Justin. H. (2012), “The democratic deficit in the states”. American Journal of Political Science, vol.56, n.1, p.148-166.

LADNER, Andreas; KEUFFER, Nicolas, BALDERSHEIM, Harald. (2016), “Measuring local autonomy in 39 countries(1990–2014)”. Regional & Federal Studies, vol.26, n.3, p.321–357.

POWER, Timothy J.; RODRIGUES-SILVEIRA, Rodrigo. (2019),  “Mapping ideological preferences in Brazilianelections, 1994-2018: A municipal-level study”. Brazilian Political Science Review, vol.13, n.1.

THE WORLD BANK. (2020), Women, business and the law.

 

Como citar esse post

ARAÚJO, Victor; GATTO, Malu. O conservadorismo mata as mulheres?. Blog DADOS, 2021 [published 4 march 2021]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/conservadorismo-mata-mulheres/