Dados é uma das principais e mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil. Criada em 1966, divulga trabalhos inéditos e inovadores, oriundos de pesquisa acadêmica, de autores brasileiros e estrangeiros. Editada pelo IESP-UERJ, é seu objetivo conciliar o rigor científico e a excelência acadêmica com ênfase no debate público a partir da análise de questões substantivas da sociedade e da política.
Brasileiros que votaram em Haddad consideram-se duas vezes mais suscetíveis a ter sua saúde afetada;
E eleitores do então candidato do PT consideram 50% mais provável perder emprego durante a crise;
Polarização sobre a crise diminiu apoio de Bolsonaro entre eleitorado “anti-PT”.
Introdução[1]
Nada escapa à polarização no Brasil, nem mesmo as percepções de riscos de saúde e de emprego em meio à maior crise de saúde da história recente do país. Enquanto em diversos países na América Latina, a emergência dos casos de Covid-19 trouxe à tona um discurso mais ameno e um senso de ação coletiva, como nos casos da Argentina e Uruguai, o presidente Jair Bolsonaro seguiu na contramão: promoveu mensagens políticas ultra partidarizadas, investiu na polarização política, e desafiou governadores e autoridades locais a não adotarem políticas com foco no controle do novo coronavírus.
Bolsonaro espelhou-se de início em Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos, desafiando os riscos da pandemia e atribuindo responsabilidades pela crise a agências internacionais, governadores e líderes políticos estrangeiros. No entanto, enquanto o avanço no número de casos levou Donald Trump a moderar seu discurso, as mensagens públicas de Bolsonaro continuaram em seu padrão inicial: esqueçam o vírus, preparem-se para algumas mortes, sigam com seus trabalho, o Brasil não pode parar. As consequências são notáveis. Enquanto os Estados Unidos lideram o número de contaminações e mortes no mundo, o Brasil lidera na América Latina. E a liderança é confortável.
Nos Estados Unidos, pesquisas recentes têm demonstrado consistentes diferenças partidárias sobre como cidadãos respondem às políticas de saúde adotadas durante a pandemia. Por exemplo, democratas e republicanos aderiram de forma distinta a simples medidas como lavar as mãos e usar álcool em gel, e, ao mesmo tempo, distritos em que a votação de republicanos é historicamente alta praticaram menos distanciamento social quando comparados a distritos democratas. Resultados semelhantes foram apresentados para o caso brasileiro: cidades onde Bolsonaro recebeu forte apoio em 2018 exibiram crescimento mais acelerado da transmissão de Covid-19 e menor adesão a políticas de distanciamento.
Neste pequeno artigo, apresentamos os resultados de nossa pesquisa sobre preferências partidárias e percepção de risco no Brasil durante a crise da Covid-19. Documentamos diferenças fortes sobre como brasileiros pró-governo e da oposição expressam suas percepções de risco em meio à pandemia. Em seguida, apresentamos dados experimentais do efeito de diferentes enquadramentos sobre o novo coronavírus na percepção de risco dos eleitores. Nosso estudo é o primeiro a agregar dados experimentais sobre como alinhamento político e partidarismo afetam a percepção de risco dos brasileiros durante a presente crise de saúde pública.
A polarização na resposta à Covid-19
Em nosso recém terminado survey usando uma amostra aleatória de alcance nacional, brasileiros que votariam no candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad, reportaram duas vezes mais a probabilidade de terem sua saúde afetada pela Covid-19, assim como indicaram 50% mais a chance de perderem seu emprego durante a crise. Como era de se esperar, tais diferenças são ainda maiores quando se referem à avaliação do governo durante a crise. As distinções em relação ao risco no emprego e na saúde mantêm-se estáveis quando se usa modelos estatísticos controlando por fatores como renda, idade, escolaridade e emprego. Mais interessante, no entanto, é que em nossos surveys no México e na Argentina, utilizando as mesmas perguntas, os efeitos das preferências partidárias são menores, e praticamente nulas nas três variáveis para o caso argentino. Ao fim, a ativação do partidarismo em relação à Covid-19 parece estar entrelaçada com a polarização promovida por Bolsonaro e suas respostas a pandemia.
Figura 1 : Voto, Percepção de Risco e Apoio as Políticas do Governo Durante a Pandemia de COVID-19
Com vistas a explicar os mecanismos comportamentais impulsionando as respostas partidárias à Covid-19 no Brasil, implementamos uma análise experimental em nosso survey. Dividimos os entrevistados em quatro grupos com probabilidades iguais, e cada um deles leu um tuíte produzido por nossos pesquisadores. Os tuítes variaram em seus autores e conteúdos. No primeiro caso, alteramos o autor do tuíte entre Fernando Haddad, candidato à presidência pelo PT em 2018, e Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Bolsonaro. No que se refere ao conteúdo das mensagens, usamos um enquadramento positivo para a crise, reforçando que era momento de agir em conjunto, e um enquadramento negativo, em que cada autor atribuía a responsabilidade ao seu adversário pela gravidade da pandemia no país[2].
Quando nossos entrevistados leem as mensagens negativas de Eduardo Bolsonaro, há uma notável diminuição no apoio ao governo, e um aumento na percepção de risco de perder o emprego. Tais diferenças se mantêm até quando consideramos somente os eleitores de Bolsonaro e os respondentes que se declararam como antipetistas. Em geral, a polarização promovida por Bolsonaro durante a pandemia parece afetar diretamente, e negativamente, sua popularidade, com parte dos seus eleitores mais fiéis.
Por outro lado, mensagens negativas, nas quais a culpa era atribuída a adversários políticos, aumentaram respostas partidárias por parte dos entrevistados. Em particular, eleitores de Fernando Haddad demonstraram com maior regularidade sentir o risco de perder o emprego após lerem mensagens negativas de Eduardo Bolsonaro. Mensagens positivas não tiveram efeito significativo nas respostas partidárias.
Ao explorar em mais detalhes esses achados, encontramos que apoiadores do presidente exibiram menor probabilidade de “retuitar” ou “favoritar” nossa mensagen negativa enviada por Eduardo Bolsonaro quando compara à sua mensagem clamando por união nacional. Eleitores pró-governo que receberam o tuíte positivo de Eduardo Bolsonaro reagiram com um “amei” 63% das vezes, e retuitaram outras 18%. Por outro lado, tal comportamento cai para 43% e 12% ao lerem nosso tuíte negativo. Portanto, enquanto ambos tuítes induzem respostas partidárias, aquelas com um enquadramento mais polarizado não são bem aceitas por seu “fiel” grupo de eleitores.
Figura 2: Proporção dos entrevistados “Favoritando”, “Compartilhando” e “Respondendo” tuítes de Bolsonaro e Haddad
Nota: Foi permitido aos entrevistados “responder, “curtir”, “compartilhar” ou / e “retuitar” simultaneamente as postagens que lhes foram dadas. Enquanto eleitores de Bolsonaro e Haddad “curtiram” e “compartilharam” com maior frequências mensagens de autores alinhados ideologicamente, eles o fizeram mais ativamente para as mensagens positivas do que negativas.
Pesquisas recentes sobre partidarismo no Brasil chamam a atenção para a importância do antipetismo, e sua relevância na eleição de Jair Bolsonaro. Nós investigamos como diferentes enquadramentos sobre a crise afetam’ em particular os antipetistas no país. Nossos resultados indicam que antipetistas são mais sensíveis aos nossos tuítes, principalmente exibindo uma forte diminuição no apoio ao governo e aumento na sua percepção de risco relacionado ao emprego quando deparados com mensagens negativas de Bolsonaro. De fato, a polarização em torno da Covid-19 parece ainda ser eficiente para ativar partidários que apoiam Bolsonaro, porém nossos experimentos demonstram como a polarização excessiva impacta negativamente os eleitores que simplesmente declaram “odiar” o PT. Bolsonaro faz uma aposta arriscada na polarização, que parece afastar de sua base de apoio os eleitores com forte sentimento antipetismo. No contexto brasileiro, com muitos partidos e uma longa tradição de impeachment presidencial, a perda de apoio neste segmento pode determinar o futuro do governo Bolsonaro.
Em um momento em que a medida de distanciamento social representa a principal política de saúde para conter a Covid-19, nossos achados demonstram, com dados observacionais e experimentais, que a percepção de risco dos brasileiros não está imune às suas preferências partidárias. Privilegiar o partidarismo e a polarização de seus apoiadores mais fiéis pode ser politicamentre atrativo para Bolsonaro, porém possui consequências cruciais para a saúde da população nacional, bem como para a estabilidade do seu governo a longo prazo. Mensagens negativas e com forte polarização pró-governo induzem diferentes mecanismos de percepção de risco, e afetam o quanto cada eleitor se expõe ao vírus. As manifestações em apoio a Bolsonaro e contra as políticas de isolamento são uma demonstração clara deste fenômeno. Em um exemplo dramático da polarização no país, as ações de Bolsonaro e as respostas comportamentais de seus apoiadores fazem com que a polarização no Brasil se torne cada vez mais uma questão de vida ou morte.
Notas
[1] Este artigo apresenta resultados de pesquisa em andamento em conjunto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (IADB) entítulada “Transparency, trust, and Social Media”, 1300600-01-PEC. PI: Ernesto Calvo, 2019-2020.
[2] Ver versão preliminar do artigo para a descrição completa do desenho experimental e dos resultados. Disponível em https://osf.io/ps4zh/.
CALVO, Ernesto; VENTURA, Tiago. Percepção de risco sobre a Covid-19 reproduz polarização pró e anti-Bolsonaro. Blog DADOS, 2020 [published 27 May 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/percepcao-risco-covid-19-polarizacao/
Tags:coronavírus, covid-19, novo coronavírus, pandemia, política