Dados é uma das principais e mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil. Criada em 1966, divulga trabalhos inéditos e inovadores, oriundos de pesquisa acadêmica, de autores brasileiros e estrangeiros. Editada pelo IESP-UERJ, é seu objetivo conciliar o rigor científico e a excelência acadêmica com ênfase no debate público a partir da análise de questões substantivas da sociedade e da política.
Paulatinamente, vem se formando no Brasil um consenso equivocado sobre nossa produção científica. Segundo ele, apesar de estarmos entre as vinte nações que mais publicam artigos acadêmicos, estes possuiriam um impacto internacional pífio. Esta é, por exemplo, a opinião expressada e reiterada pelo atual presidente da CAPES, Anderson Correia. Dessa perspectiva, teríamos que remodelar nossos instrumentos de fomento à ciência, incentivando o incremento das citações e publicações internacionais em detrimento das revistas brasileiras com pouco ou nenhum impacto.
Vale mencionar que tal política já se reflete em restrições orçamentárias e burocráticas. Do lado do fomento, o CNPq divulgou há poucas semanas o resultado preliminar do seu programa editorial, o qual financiará apenas 50 periódicos em um universo de mais de 200 solicitantes. Embora a agência não tenha revelado os critérios para tamanha restrição, a lista de contemplados sugere a utilização de índices internacionais como o Fator de Impacto na definição dos poucos contemplados. Do lado da avaliação, o sistema Qualis-CAPES passa por uma profunda remodelação e, ao que tudo indica, passará a espelhar as métricas internacionais de ranqueamento num chamado “Qualis de Referência”, o que implicaria consolidar a exclusão do rol de periódicos financiáveis quase três quartos de nossas revistas. Não deixa de ser paradoxal que a publicação de artigos acadêmicos em revistas qualificadas seja o principal critério para a distribuição de financiamento de pesquisa no Brasil e no mundo, mas essas mesmas revistas estejam assistindo à extinção do financiamento para elas próprias.
No geral, estão corretos os números mobilizados para justificar o diagnóstico de que publicamos muitos artigos de baixo impacto internacional. Apesar disso, tal diagnóstico padece de sérias falhas, não apenas por desconsiderar os efeitos do isolamento mundial de nossa língua franca, o português, mas também porque interpreta equivocadamente as diferentes estratégias que um país pode adotar para fomentar as descobertas e debates científicos. Embora os artigos aqui publicados tenham menor impacto que aqueles assinados por nossos congêneres colombianos, argentinos e chilenos, por exemplo, o português é hoje a segunda língua com mais citações científicas médias de acordo o índice h5 do Google Scholar, à frente do espanhol e do francês, só atrás do inglês.
É impossível desconsiderar o peso que a ciência produzida e comunicada em língua inglesa tem no mundo, peso este que espelha em parte suas vantagens econômicas gerais. Logo, todo país periférico que deseja competir nesse mercado editorial científico tem de formular uma tática de internacionalização que combine elementos de duas estratégias polares. Uma seria equivalente à “dolarização linguística do mercado científico”, isto é, incorporar nas agências financiadoras nacionais as métricas e bases internacionais – leia-se, anglófonas – como critérios de distribuição de investimentos. Com as devidas proporções e particularidades, esse é o caso de países como o Chile, parcialmente da Argentina e recentemente da Colômbia, os quais recompensam seus acadêmicos com bolsas e prêmios quando eles publicam em periódicos de relevo “internacional”. Outra tática é investir na formação de um “mercado nacional científico” que mire no “fortalecimento da moeda linguística local”, caminho adotado pelo Brasil nas últimas décadas e hoje em xeque.
De fato, a analogia mercadológica tem seus limites, haja vista o fato de estarmos falando de “produtos” muito mais etéreos como descobertas e interpretações científicas. Ainda assim, ela funciona na medida em que evidencia as vantagens e desvantagens de cada uma das estratégias. Enquanto a “dolarização científica” permite aos países participarem da competição internacional com muito mais desenvoltura, ela tem como contrapartida a rendição da ciência local às problemáticas, critérios de publicação e regras internacionais. Vale mencionar, também, que a metáfora adquire tons denotativos quando observamos o mercado internacional de publicações científicas, muito mais voltado para o lucro financeiro e a venda de assinaturas ou de espaços nas revistas do que o existente no Brasil.
De todo modo, o fortalecimento das moedas cientificas nacionais de fato pode isolar a academia de um país das descobertas internacionais, mas tende a ter como consequência uma maior conexão daquela com as problemáticas locais, além do fortalecimento das áreas estratégicas para o desenvolvimento de uma dada nação. No caso do Brasil em específico, formou-se um mercado de comunicação científica baseado nas práticas de acesso aberto, fomentadas sobretudo pelo SciELO, padrão de comunicação científica que se tornou modelar e é agora imitado por muitos países europeus.
Outro dado importante é a relativa endogenia entre o número de citações de um artigo, revista ou língua em uma dada base e a soma total de artigos e revistas indexados naquela base. A quantidade de artigos publicados por um país costuma ser medida a partir do número de entradas das revistas deles nas principais bases de indexação científica internacionais como Scopus, Web of Science, SciELO etc; já o impacto científico de um artigo específico costuma ser medido pelos índices de citação como Fator de Impacto, JCR, h5 etc. Logo, um país que tenha muitos periódicos indexados em uma dada base tende forçosamente a ter mais impacto nela. Em parte, é por isso que os EUA figuram como potência isolada em termos de citações: não apenas porque seus cientistas publicam mais descobertas relevantes, mas também porque o país possui uma quantidade incomparável de revistas indexadas nas mesmas bases que medem tal impacto.
Nas últimas décadas, o Brasil escolheu incentivar as publicações internacionais sem descuidar do fomento a um universo de comunicação científica próprio. Mutatis mutandis, o país investiu também na própria moeda linguística em vez de dolarizar por completo sua economia e render-se à força do inglês como língua franca. Tal opção tem um custo evidente: nossos “produtos” científicos circulam menos pelo mundo, o que se reflete em nossos ainda baixos índices de citação internacionais. Mas também ela tem vantagens palpáveis como a formação de áreas científicas orientadas pelos problemas e demandas nacionais.
Aliás, são justamente essas áreas “mais nacionais” que tendem a se gabaritar para a competição internacional. Noutros termos, as áreas disciplinares brasileiras mais fortes internacionalmente são justamente aquelas mais conectadas aos problemas nacionais. Esse é o caso das Ciências da Saúde e toda produção ligada às doenças tropicais, secundarizadas pela ciência do norte global; da Agronomia de ponta produzida no país do mundo que mais exporta commodities; da Saúde Coletiva e sua ênfase nos determinantes sociais do bem-estar humano; dos estudos sobre Educação Básica, área na qual o país enfrenta problemas sérios, mas ainda tem muito a avançar; na Enfermagem e sua ênfase em cuidados básicos, tradicionalmente negligenciados pela Medicina global.
Note-se que nos exemplos citados, o fortalecimento da produção científica nacional, comunicada ao menos num primeiro momento em português, foi a base para sua consequente internacionalização. Decorrência disso é a posição do português como segunda língua cujos artigos acumulam mais citações de acordo com o índice h5 do Google. Nesse quesito, estamos a frente do espanhol, do francês e do chinês, perdendo apenas para o inglês. Isso não quer dizer, evidentemente, que o Brasil e os demais países de língua portuguesa formem a segunda potência mundial em termos de citação/impacto, mas sim que muitos países não anglófonos (como Argentina, Chile, Colômbia, China etc.) estão preferindo incentivar a publicação em periódicos estrangeiros anglófonos em detrimento do fomento a um mundo editorial nacional.
De todo modo, é simplório dizer que a ciência brasileira produz muito e impacta pouco. E o risco de reduzir os investimentos numa estratégia de fortalecimento de uma mercado cientifico-editorial nacional sem uma alternativa clara é eliminar todas as conquistas arduamente acumuladas sem os benefícios de uma nova tática.
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