Dados é uma das principais e mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil. Criada em 1966, divulga trabalhos inéditos e inovadores, oriundos de pesquisa acadêmica, de autores brasileiros e estrangeiros. Editada pelo IESP-UERJ, é seu objetivo conciliar o rigor científico e a excelência acadêmica com ênfase no debate público a partir da análise de questões substantivas da sociedade e da política.
A despeito da enxurrada de repressão pós-1964, a esquerda predominou esteticamente ao longo dos anos 1960[1]. É esta uma das ideias principais defendidas por Roberto Schwarz em “Cultura e Política, 1964-1969”. Não é nosso intuito entrar aqui na polêmica sobre a ‘hegemonia cultural’ da esquerda, tal como dizia o crítico literário, cuja argumentação levava de roldão o Partido Comunista, o populismo, o nacionalismo, o “povo” e tantos outros. Em sentido oposto ao de análises que tendem a encapsular a história de nossas ciências sociais brasileiras em campos autonomizados, queremos sugerir que as tensões entre cultura e política à la Schwarz são relevantes para a compreensão dessa história. Mais especificamente, e de modo análogo ao esboço de história da Sociologia e da Ciência Política uspianas (Szwako 2012; Szwako e Araújo, 2019), propomos aqui uma agenda na qual as diferentes publicações, tanto do ponto de vista científico como estético, entrelaçam-se na história intelectual dessas disciplinas. Para tal, tomamos a gênese de Dados – Revista de Ciências Sociais (doravante Dados) como caso ilustrativo desse entrelaçamento entre ciência e estética, política e cultura. Não se trata, contudo, de uma análise estrita da trajetória estética de Dados – tarefa já sugerida a possíveis interessados. Trata-se antes de notar que a compreensão desse periódico, como de outros, passa pelas configurações político-intelectuais (sempre estéticas) nas quais instituições, grupos e escolas de pensamento fizeram e fazem suas apostas político-teóricas.
Pouca gente sabe, mas o projeto gráfico da capa das primeiras edições de Dados, lançada originalmente em 1966, foi idealizado e executado por Rogério Duarte (1939-2016). Difícil definir essa figura num só substantivo: “Poeta, letrista, artista plástico. Pensador. Músico. Matemático. Ator.”[2] – é sua melhor e mais ampla caricatura. No mundo da agitação cultural, Duarte é conhecido e reconhecido por sua inserção e peso junto aos chamados tropicalistas, tendo atuado não apenas como capista e designer, mas também como um de seus formuladores teóricos. Na falta de rótulos apropriados à extensa gama de suas intervenções, a história pré e pós-1964 pode nos dizer algo sobre o perfil de Rogerio Duarte.
Antes do golpe, Duarte atuava Revista Movimento, então publicada pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Ao lado dele, na UNE, também estava parte dos sociólogos da geração júnior do antigo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), dentre eles, Carlos Estevam Martins, Wanderley Guilherme dos Santos e Cesar Guimarães, que, no segundo volume de 1962, publicaram na Movimento reflexões sobre arte popular revolucionária, direitas e universidades brasileiras, respectivamente. Em 1962 o país estava, como disse Schwarz, irreconhecivelmente inteligente. No entanto, a aproximação de Rogério Duarte com a UNE e seu Centro Popular de Cultura foi fundamentalmente tensa, pois era ele visto como “porra-louca, caos, etc” (Duarte 2003: 13). E, malgrado a representação que o próprio Duarte fazia (por razões diversas daquelas que boa parte da literatura uspiana, de Chaui a Schwarz, fez) do CPC, estava longe de ser simples e simplesmente “populista”[3] o jogo das tensões estético-ideológicas internas à UNE e dela com o Partidão (cf. Garcia 2004).
Figura 1: Capas de Revista Movimento (1962, 1963)
Fonte: Fuchs et al. (2017, s/p).
Assim, considerado apenas o intervalo entre 1962 e 1966, entre a Movimento e a criação de Dados, veem-se as disputas travadas por uma parte das organizações, intelectuais e correntes de esquerda tanto na cultura como na política brasileiras – PC, ISEB, UNE, CPC, dentre outros. Foi naquela configuração depois desmobilizada e repaginada pelo golpe e pela crescente repressão e, portanto, como herdeiro indireto, não só do ISEB, mas dessa trama mais ampla de elaborações políticas, estéticas e ideológicas, que nasceu o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Do ponto de vista da produção intelectual substantiva, as mudanças observadas na produção de Carlos Estevam e Wanderley Guilherme, então publicada em Dados, dão exemplo de como as formulações e pretensões revolucionárias do ISEB, em especial as de Estevam, deram vez a uma reflexão centrada na “construção teórica”[4]. Ou, para dizê-lo de outro modo, o conteúdo publicado em Dados estava relativamente distante tanto daquele dos Cadernos do Povo brasileiro quanto dos Cadernos do Nosso Tempo.[5]
Se, no plano das ideias, o Iuperj trazia uma novidade antecipando uma tendência de desradicalização, no plano estético o Instituto estava inserido em meio àquelas siglas e redes intelectuais dos anos 1960. Assim, distinguida por suas cores saturadas, Dados nasceu – figura 2 – seguindo “o estilo clássico do journal acadêmico, reproduziu o sumário na primeira capa, a diagramação do miolo em duas colunas” (Pessanha, 2017, p.608). A associação, projetada por Rogério Duarte, entre a sobriedade da organização de informações e as capas coloridas remetia tanto à proposta de cientificismo, que distinguia o periódico do Iuperj de outros, quanto à articulação com os movimentos de inovação estética que fervilhavam nos anos 1960, demarcando o caráter inovador da proposta. Na esteira da pista de Pessanha sobre o estilo academicista da diagramação da revista, podemos nos perguntar pela composição gráfico-estética de Dados e por suas relações, sejam de distanciamentos ou continuidades, com outras revistas quer pretéritas ou contemporâneas a ela.
Figura 2: Capas de Dados
Fonte: Biblioteca WGS/IESP/UERJ.
O cotejo com outros periódicos nos permitirá notar, contudo, que a pista do sumário à capa não foi uma novidade gráfica de Dados. Sociologia – Revista Didática e Científica, periódico pioneiro da Escola Livre de Sociologia e Política também trazia, desde suas primeiras edições nos anos 1940 até meados dos 1960, capa com sumário. Em outra linha editorial, os Cadernos do Nosso Tempo do IBESP também vinham com conteúdo indexado à frente. E, considerando-se um espaço de disputa intelectual e cultural mais amplo e mais longevo, revistas como, por exemplo, a paulistana Anhembi também traziam essa mesma escolha gráfica – figura 3.
Figura 3: Facsímile de Sociologia – Revista Didática e Científica (1941); facsímile de Cadernos do Nosso Tempo (1954); Anhembi (1950) – respectivamente.
Fonte: Silva e Almeida (2015) p.241; Biblioteca WGS/IESP/UERJ.
Como se vê, no plano que vai do conteúdo impresso à capa se dá uma continuidade entre a revista do Iuperj e suas antecessoras. No entanto, tal como as capas de Movimento, também projetada por Duarte, o design gráfico implicado na escolha das cores e da textura lustrosa de Dados pertence a uma outra época do design brasileiro: os anos 1960. É nesse momento que surge, seguindo argumento desenvolvido por Rafael Cardoso (2005, p. 7), “a consciência do design como conceito, profissão e ideologia”. Esta consciência do design se estabelece no momento de rápida modernização e industrialização no país, sendo a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), no Rio de Janeiro, em 1962, um marco.
E foram aqueles anos vertiginosos, para usar o adjetivo de Homem de Mello (2006), que revolucionaram nossa linguagem visual. Hoje, contudo, nos é pouco inteligível a dimensão e o tamanho da transformação político-cultural transcorrida àquela década. Para termos alguma impressão do que foi aquela transformação, vale retomar a síntese proposta por Homem de Mello em sua comparação entre duas propagandas de Coca-Cola – figura 4:
Figura 4: A ruptura dos anos 60
Fonte: Homem de Mello, 2006, p.26-27.
Apenas separados por uma década, há entre esses reclames um mundo cultural – um mundo, diga-se de passagem, cada vez mais aferrado à visualidade – então em ebulição. A ruptura então ocorrida é tal que não dispomos de formas classificatórias estéticas adequadas para situar em qual década ou época do século XX se situa o primeiro encarte. Ao mesmo tempo em que fatores demográficos, políticos e culturais, tais como a emergência de movimentos contraculturais e, no caso brasileiro, o golpe de 1964, estiveram na raiz dessa ruptura, as mudanças ocorridas tiveram igualmente sua tradução no âmbito da linguagem visual e do design. Pari passu às artes plásticas, tais mudanças ficaram, por sua vez, estampadas em capas de discos, de livros, em revistas comerciais, na proliferação de identidades visuais e, como estamos argumentando, nas capas de periódicos científicos, como a Dados.
Na esteira de trabalhos icônicos para o design editorial brasileiro, como as capas estonteantes da editora Civilização Brasileira projetadas pelo designer austríaco Eugênio Hirsch, a linguagem gráfica passou a ser peça central na elaboração de estratégias de comunicação. E aqui voltamos a Rogério Duarte: embora ele seja atualmente mais reconhecido por suas capas e teorizações tropicalistas, isso não precisa obliterar outras camadas em que Duarte esteve implicado nas transformações gráficas e estéticas de então. Além de ter refletido sobre os desafios impostos ao design brasileiro (Duarte, 1965), ele foi, nessa mesma década, diretor de arte da editora Vozes, tendo ainda feito, com Rogério Gomes, o hoje clássico encarte de Deus e o Diabo na Terra do Sol (para ficarmos restrito a este filme) – figuras 5.
Figuras 5: Projetos gráficos de Rogério Duarte
Capa do disco de Gilberto Gil.
Pôster do filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol.
A imagem com Corisco (Othon Bastos) é, hoje, muito mais que um cartaz de filme, é um ícone de nossa cultura visual. Se, a seu tempo, em pleno ano de 1964, ele atualizava as vanguardas e correntes então em jogo, hoje segue sendo objeto de disputa, atualização e inspiração para variadas audiências, dentre as quais estão as instituições e revistas científicas. Desse modo, como queremos deixar sugerido a outras possíveis pesquisas, a história intelectual de nossas ciências não se resume a uma exegese de textos e argumentos, não se encerra em nossas instituições e bio-bibliografias; nossa história intelectual é aquela das apostas que, atravessadas pelas tensões entre cultura e política, não são meramente “teóricas”. São apostas desde o seu início estéticas, editoriais e ideológicas por meio das quais os grupos e instituições metafórica e literalmente se imprimem no mundo. Mais que mero suporte ou adorno superficial, o projeto gráfico diz muito sobre a concepção daquilo que se apresenta e daqueles que ali se representam.
A Dados, por meio do projeto de Rogério Duarte, demarcava posição ao empunhar a bandeira da cientificidade, em um cenário de crescente repressão política, e dialogava com as inovações teórico-estéticas da época de forma ao mesmo tempo sóbria e moderna. Materializava-se, dessa forma, uma das revistas mais importantes na formação de diversas gerações de cientistas sociais no Brasil. A Dados, não somente como suporte para ideias inovadoras, mas como objeto material a ser lido, riscado, compartilhado e colecionado, inevitavelmente viria a fazer parte da vida de estudantes e pesquisadores nas décadas seguintes. A sua forma gráfica, longe de ser um mero detalhe, foi parte constitutiva do jogo de ideias que se fez materializar na época.
Referências
DUARTE, Rogério. (2003). Tropicaos. Rio: Azougue.
DUARTE, Rogério. (1965). “Notas sobre o Desenho Industrial”. Revista Civilização Brasileira n. 4, p. 227-247.
FUCHS, Isabela; ALMEIDA, Fernando dos Santos; FIALHO, Francisco. (2017) “Rogério Duarte e a Revista Movimento (1962)”. Revista Tríades. V.6, n.2. https://triades.emnuvens.com.br/triades/article/view/90/52, s/p
GARCIA, Miliandre. (2004). “A questão da cultura popular: as políticas culturais do centro popular de cultura da União Nacional dos Estudantes”. Revista Brasileira de História v. 24, n.47, p.127-16
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (1992) Impressões de viagem. Rio: Rocco.
HOLLANDA, Cristina Buarque de. (2012) “Os Cadernos do Nosso Tempo e o interesse nacional”. Dados, v. 55, n.3, p.607-640.
MELLO, Chico Homem. (2006). O Design Gráfico Brasileiro – Anos 60. São Paulo: Cosac Naify.
PESSANHA, Charles. (2017). “50 Anos de DADOS”. Dados v. 60, n. 3, pp. 605-622.
SCHWARZ, Roberto. (1978). “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Notas
[1] Agradecemos a Mari Chaguri, Aicha Barat, Vinicius de Morais, Luiz Augusto Campos e Marcia Candido pelas críticas e reservas, apesar de sabermos que estamos aquém delas.
[2] Cf. https://dicionariompb.com.br/artista/rogerio-duarte/
[3] Se Caio N. Toledo se imbuiu da tarefa de diminuir o papel do ISEB como fabricação ideológica, coube à crítica de Heloisa Buarque de Hollanda – de mãos dadas com Weffort, Schwarz e um Jabor ressentido no Pasquim – reduzir o CPC a mero paternalismo (cf. Hollanda, 1992).
[4] Martins, Carlos. (1966). “Construção de teoria em Ciências Sociais”. Dados, n.1.
[5] Cadernos do Povo Brasileiro é o nome da coleção de livros publicada entre 1962 e 1964 pela Civilização Brasileira em parceria com o finado ISEB. Já o periódico Cadernos do Nosso Tempo foi editado entre 1953 e 1956 pelo o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, conhecido pela sigla IBESP, antecessor do ISEB.
SZWAKO, José; NOBREGA, Leonardo. “Cultura e Política”: estética e design nas capas de Dados nos anos 1960. Blog DADOS, 2022 [published 15 Sept. 2022]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/estetica-design-dados-anos-1960/
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