Dados é uma das principais e mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil. Criada em 1966, divulga trabalhos inéditos e inovadores, oriundos de pesquisa acadêmica, de autores brasileiros e estrangeiros. Editada pelo IESP-UERJ, é seu objetivo conciliar o rigor científico e a excelência acadêmica com ênfase no debate público a partir da análise de questões substantivas da sociedade e da política.
Uma consequência normativamente esperada em democracias representativas é a aproximação entre as demandas do eleitorado e as políticas públicas implementadas por aqueles eleitos para governar (Lax and Phillips 2012). O mecanismo que explicaria isso é simples: uma vez eleitos, os representantes teriam interesse em maximizar o bem-estar dos representados em troca de votos nas eleições seguintes. Por isso, em democracias, espera-se que os políticos adotem um programa de governo que se aproxime da preferência majoritária do eleitorado.
Mas o que acontece quando o anseio da maior parte dos eleitores coloca em risco a vida de minoriais (e.g., Indígenas e LGBTQ+) ou maiorias minorizadas (Mulheres e Negros)? Por exemplo, imagine um cenário em que a maior parte dos eleitores é conservadora e contrária à adoção de políticas de combate à violência contra a mulher. Neste cenário, a decisão de implementar políticas públicas seria orientada exclusivamente por um cálculo eleitoral ou seria a demanda da maioria sobrestada pela necessidade de proteger um grupo vulnerável? É essa pergunta que tentamos responder no artigo “Can conservatism make women more vulnerable”, recentemente aceito para publicação no periódico acadêmico Comparative Political Studies (CPS).
No mundo, cerca de 35% das mulheres já foram vítimas de violência praticada por seus parceiros (García-Moreno et al, 2013). No Brasil, uma mulher é vítima de violência a cada quatro minutos (Cerqueira et al, 2019).
Esses números alarmantes têm levado muitos países ao redor do mundo a adotar legislações de proteção às mulheres. Em 2020, mais de 155 países já contavam com alguma lei ou medida de combate à violência contra as mulheres (World Bank, 2020). No Brasil, alguns esforços nesse sentido começaram já na década de 1980, mas ganharam abrangência e se materializaram em 2006, quando o Projeto de Lei 11.340 foi aprovado. Além de reconhecer e tipificar diferentes formas de violência doméstica, a Lei Maria da Penha identificou mecanismos de justiça e proteção e recomendou a adoção de tais instrumentos pelos municípios brasileiros.
A Tabela 1 lista esses instrumentos e a frequência com que são adotados no nível local. Como pode ser visto, muitos municípios optam por não implementar os mecanismos de justiça e proteção recomendados pela Lei Maria da Penha. Mais de 70% dos municípios não adotam sequer um instrumento de proteção (e.g., Serviços especializados de atendimento à violência sexual). Do mesmo modo, não existem instrumentos de justiça (e.g., Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres) em cerca de 90% dos municípios brasileiros. O que explica essa opção dos políticos locais por não implementarem políticas que possam prevenir e/ou lidar com a violência contra as mulheres?
Tabela 1: Instrumentos de combate à violência contra a mulher no Brasil
Tipo | Descrição do instrumento | N | % |
Proteção | Conselho Municipal de Direitos da Mulher | 1313 | 23.58 |
Proteção | Centro Especializado de Atendimento à Mulher | 385 | 6.91 |
Proteção | Casas-Abrigo | 134 | 2.41 |
Proteção | Serviços Especializados de Atendimento à Violência Sexual | 540 | 9.7 |
Justiça | Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres | 460 | 8.26 |
Justiça | Juizado ou Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher | 250 | 4.49 |
Justiça | Promotorias Especializadas/Núcleos de Gênero do Ministério Público | 188 | 3.38 |
Justiça | Defensorias da Mulher ou Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher | 87 | 1.56 |
Justiça | Patrulha Maria da Penha | 182 | 3.27 |
Justiça | Serviço de Responsabilização do Agressor | 113 | 2.03 |
Municípios sem nenhum instrumento de proteção | 3901 | 70.06 | |
Municípios com 1 instrumento de proteção | 1174 | 21.08 | |
Municípios com 2 instrumentos de proteção | 328 | 5.89 | |
Municípios com 3 instrumentos de proteção | 119 | 2.14 | |
Municípios com mais de 3 instrumentos de proteção | 46 | 0.83 | |
Municípios sem nenhum instrumento de justiça | 4902 | 88.04 | |
Municípios com 1 instrumento de justiça | 349 | 6.27 | |
Municípios com 2 instrumentos de justiça | 163 | 2.93 | |
Municípios com 3 instrumentos de justiça | 71 | 1.28 | |
Municípios com mais de 3 instrumentos de justiça | 83 | 1.49 |
Partindo do pressuposto de que políticos desejam ganhar eleições e que, para tanto, buscam adotar um programa de governo que seja responsivo aos seus eleitores, testamos a hipótese de que políticas de proteção às mulheres são menos prováveis em municípios com um eleitorado mais conservador. Nesse caso, assumimos que os eleitores conservadores, aqueles que tendem a votar em candidatos e partidos à direita do espectro ideológico, são mais resistentes à adoção de políticas de proteção às mulheres. E por esse motivo, nos municípios onde os eleitores conservadores são maioria, os políticos locais teriam poucos incentivos para implementar a Lei Maria da Penha em sua integralidade.
Testamos essa hipótese de duas formas. Em primeiro lugar, usamos dados de nível municipal para examinar se existe alguma correlação entre o nível de conservadorismo do eleitorado e o número de instrumentos implementados para combater a violência contra as mulheres. Para tanto, utilizamos o índice de conservadorismo eleitoral construído por Power e Rodrigues (2019). Os instrumentos listados na Tabela 1 foram utilizados para a construção de um índice que varia de 0 a 10; onde 0 significa que nenhuma política de combate à violência contra as mulheres foi adotada e 10 significa que todas foram implementadas em um dado município.
A Figura 1 apresenta nossos resultados principais. Mesmo quando controlamos pelas características dos políticos locais e por diversos outros fatores de nível municipal, nossos modelos estatísticos sugerem que prefeitos eleitos por eleitorados conservadores optam por implementar um número menor de instrumentos de combate à violência contra as mulheres. Esse resultado é especialmente forte no caso dos instrumentos de proteção (Painel B), políticas fundamentais para garantir a proteção e a integridade das sobreviventes de violência física e psicológica.
Figura 1: Relação entre o número de instrumentos de combate à violência contra as mulheres e o nível de conservadorismo do eleitorado nos municípios brasileiros
Mas como saber se o conservadorismo do eleitorado se traduz de fato em menor suporte às políticas de proteção às mulheres? Um pressuposto dos testes discutidos acima é que eleitores conservadores tendem a se opor à adoção de políticas de combate à violência contra as mulheres. No entanto, os eleitores frequentemente são conservadores em uma dimensão e progressistas em outras. Por exemplo, um dado eleitor pode ser conservador em dimensões socioculturais e, ao mesmo tempo, ser progressista em relação à economia. Neste caso, importa saber se os indivíduos mais conservadores são, de fato, menos propensos a apoiar políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Como dados agregados não permitem responder de forma adequada essa questão, utilizamos uma pesquisa de opinião, realizada em abril de 2019, e que entrevistou 2.086 indivíduos em todos os estados brasileiros. De posse desses dados, criamos um índice de conservadorismo individual baseado nas seguintes perguntas:
1) Você se considera feminista e/ou apoia o feminismo?
2) Você é a favor ou contra que o Brasil receba refugiados da Venezuela?
3) Quanto mais pessoas presas, mais segura estará a sociedade?
O índice varia entre 0 e 3. Foram classificados como zero (i.e., não são considerados conservadores) em nosso índice aqueles indivíduos que apoiam o feminismo, que são a favor do acolhimento de refugiados da Venezuela no Brasil e que são contra uma política de encarceramento em massa.
Em nosso estudo, investigamos se o modo como os indivíduos são classificados nesse índice afeta a opinião dos mesmos sobre os seguintes temas relacionados à violência contra as mulheres:
1) A violência contra a mulher aumentou no Brasil no último ano.
2) As leis no Brasil são adequadas para proteger as mulheres.
3) A imprensa exagera na exposição dos casos de violência contra a mulher.
A Figura 2 reporta os principais resultados dos nossos modelos estatísticos. Os indivíduos mais conservadores, aqueles que receberam valores maiores no nosso índice de conservadorismo, são mais propensos a acreditar que as leis existentes são suficientes para proteger as mulheres. Na mesma direção, os mais conservadores são também mais propensos a acreditar que a imprensa exagera na exposição dos casos de violência contra a mulher. Esses resultados sugerem que o conservadorismo reduz o apoio às políticas de combate à violência contra as mulheres. Esses achados também reforçam a validade das nossas evidências de nível municipal. Em geral, os políticos locais, antecipando que a proteção às mulheres é uma pauta impopular entre os eleitores, adotam uma estratégia deliberada de não implementar medidas de proteção às mulheres.
Figura 2: Relação entre conservadorismo e percepções sobre violência contra as mulheres
Pesquisas anteriores sugerem que a ideologia dos políticos importa pouco para a formulação de políticas de proteção às mulheres (e.g., Beer, 2017). Isso ocorreria porque esse é um tema que suscita acordos mínimos, fazendo com que mesmo partidos de direita e com plataformas eleitorais conservadoras não se oponham ao avanço da legislação nessa área (Htun e Weldon, 2017). No entanto, nossos resultados sugerem que o conservadorismo pode reduzir substanticialmente os incentivos para uma efetiva implementação das legislações existentes.
Por meio de análises adicionais que interagem o nosso índice de conservadorismo com o gênero do respondente, também encontramos que esses resultados são puxados pelos homens: na nossa amostra, os homens são mais conservadores que as mulheres e, consequentemente, mais propensos a concordar que as leis existentes são suficientes para proteger as mulheres. Em contrapartida, quando o assunto é violência contra as mulheres, as atitudes das mulheres conservadoras se aproximam mais das preferências das mulheres progressistas do que dos homens conservadores. Esses resultados indicam que a não adoção no nível local de instrumentos de combate à violência contra as mulheres é, em grande medida, uma resposta às preferências dos eleitores homens.
Nossos achados contribuem para um importante debate em curso sobre o impacto potencial do aumento do conservadorismo sobre os direitos das mulheres em todo o mundo (e.g., Biroli e Caminotti, 2020). Da mesma forma que o Brasil, outros países – incluindo Argentina, França, Alemanha, Índia, México, Polônia, Suíça e os Estados Unidos – também oferecem contextos onde os governos locais podem ter altos níveis de discricionariedade sobre a formulação e implementação de políticas (Ladner et al., 2016) e onde o aumento do conservadorismo pode se traduzir no aumento do número de mulheres vítimas de violência.
Referências
BEER, Caroline. (2017), “Left parties and violence against women legislation in Mexico.Social Politics:International Studies in Gender”. State & Society, vol.24, n.4, p.511–537.
BIROLI, Flávia; CAMINOTTI, Mariana. (2020). “The conservative backlash against gender in latin america”.Politics & Gender, vol.16, n.1.
CERQUEIRA, Daniel. et al. (2019), Atlas da violência 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
GARCIA-MORENO, Claudia. et al. (2013), Global and regional estimates of violence against women: Prevalence and health effects of intimatepartner violence and non-partner sexual violence. World Health Organization.
HTUN, Mala; WELDON, S. Lauren. (2010), “When do governments promote women’s rights? Aframework for the comparative analysis of sex equality policy”. Perspectives on Politics,vol.8, n.1, p.207–216
LAX, Jeffrey R.; PHILLIPS, Justin. H. (2012), “The democratic deficit in the states”. American Journal of Political Science, vol.56, n.1, p.148-166.
LADNER, Andreas; KEUFFER, Nicolas, BALDERSHEIM, Harald. (2016), “Measuring local autonomy in 39 countries(1990–2014)”. Regional & Federal Studies, vol.26, n.3, p.321–357.
POWER, Timothy J.; RODRIGUES-SILVEIRA, Rodrigo. (2019), “Mapping ideological preferences in Brazilianelections, 1994-2018: A municipal-level study”. Brazilian Political Science Review, vol.13, n.1.
THE WORLD BANK. (2020), Women, business and the law.
ARAÚJO, Victor; GATTO, Malu. O conservadorismo mata as mulheres?. Blog DADOS, 2021 [published 4 march 2021]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/conservadorismo-mata-mulheres/