Segurança pública e violência urbana em perspectiva: 50 anos de pesquisa nas Ciências Sociais


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Giovanna Monteiro-Macedo (IESP-UERJ)

No dia 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro viveu a operação policial mais letal de sua história recente. A megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão mobilizou cerca de 2.500 agentes das forças de segurança e resultou em dezenas de mortes. Helicópteros, blindados e drones transformaram a cidade em cenário de «guerra», com moradores sob fogo cruzado e circulação interrompida por horas. Mais uma vez, a retórica do combate ao crime foi acompanhada por imagens de destruição, medo e desamparo.

As ciências sociais brasileiras têm se debruçado sobre a violência urbana há pelo menos meio século. Desde os anos 1970, a revista DADOS tem sido um espaço central desse debate, acompanhando as transformações nas formas de exercer e de sofrer a violência no país. A operação do dia 28 não é apenas um episódio recente. Ela atualiza, em nova escala tecnológica e militar, um tema que atravessa a vida dos brasileiros, assim como a trajetória intelectual da sociologia e da ciência política no país: a persistência da violência como modo de gestão do espaço urbano e das desigualdades sociais.

Já no final dos anos 1970, DADOS publicava textos que se tornaram referências fundadoras para a compreensão da violência no Brasil. Em “Violência do Estado e classes populares” (1979), Paulo Sérgio Pinheiro apontava a coerção estatal como uma política de controle das classes populares. No ano seguinte, Ruben George Oliven, em “A violência como mecanismo de dominação e como estratégia de sobrevivência”, argumentava que a violência não devia ser entendida como patologia social, mas sim como algo que é parte da constituição da sociedade e do Estado brasileiro. Simon Schwartzman e Gilberto Velho, na mesma edição, relacionavam a violência à ausência de cidadania e à desigualdade na ocupação do espaço urbano. Esses trabalhos participaram da inauguração de uma tradição de pesquisa que recusa a leitura moral da violência e propõe entendê-la como estrutura social e política.

A partir dos anos 2000, os artigos publicados em DADOS acompanharam o deslocamento do foco analítico: da violência como fenômeno social geral para a análise das instituições que a produzem e reproduzem. Adriano Oliveira, em “As peças e os mecanismos do crime organizado em sua atividade tráfico de drogas” (2007), examinou o funcionamento racional das organizações criminosas e suas interações com o Estado. No ano seguinte, Cláudio Beato e colegas, em “Crime e estratégias de policiamento em espaços urbanos” (2008), mostraram como o policiamento molda a própria geografia da violência. Poucos anos depois, Ludmila Ribeiro (2010) analisou o “funil” do sistema de justiça criminal, demonstrando a fragmentação e a ineficiência das instituições encarregadas de processar crimes de homicídio em São Paulo.

Nos anos 2010 e 2020, DADOS reuniu pesquisas que articulam a violência à economia do tráfico e à confiança nas forças de segurança. Luís Flávio Sapori (2020) comparou Belo Horizonte e Maceió para mostrar que o mercado de drogas influencia, mas não explica sozinho, as taxas de homicídio — há uma difusão mais ampla da violência, relacionada à dinâmica urbana e à ação estatal. Thiago Oliveira, André Zanetic e Ariadne Natal (2020) testaram a teoria da justeza procedimental em São Paulo, concluindo que o respeito à lei depende mais da legitimidade percebida da polícia do que da coerção. Já Arthur Trindade Maranhão Costa e Marcelo Ottoni Durante (2019) analisaram o medo do crime no Distrito Federal, mostrando que a sensação de insegurança é moldada pela confiança nas instituições policiais.

A operação de 28 de outubro de 2025 evidencia a permanência dessas questões. Ao longo de quatro décadas, artigos publicados em DADOS tem mostrado que a militarização dos territórios populares não reduz o crime, mas intensifica a letalidade e o medo. A promessa de segurança se traduz em desproteção. Estudos recentes, como o de Ignacio Cano, Tiago Bartholo, Mariane Koslinski, Rachel Machado e Mariana Siracusa (2025), sobre os impactos da guerra às drogas na educação das crianças das periferias do Rio de Janeiro, demonstram como a política de confronto produz efeitos profundos e duradouros na vida cotidiana, afetando o aprendizado, a circulação e o futuro das novas gerações.

A megaoperação de outubro repete o padrão que a literatura sociológica vem descrevendo desde os anos 1980: o uso recorrente da força como resposta à desigualdade, a criminalização dos territórios pobres e a ausência de responsabilização pelas mortes resultantes das ações estatais.

Leia estes e outros artigos na Revista DADOS sobre o tema:

CANO, Ignacio; BARTHOLO, Tiago; KOSLINSKI, Mariane; MACHADO, Rachel; SIRACUSA, Mariana. O impacto da guerra às drogas na educação das crianças das periferias do Rio de Janeiro. DADOS, v. 68, n. 3, 2025.

SAPORI, Luís Flávio. Mercado das drogas ilícitas e homicídios no Brasil: um estudo comparativo das cidades de Belo Horizonte (MG) e Maceió (AL). DADOS, v. 63, n. 4, 2020.

OLIVEIRA, Thiago R.; ZANETIC, André; NATAL, Ariadne. Preditores e impactos da legitimidade policial: testando a teoria da justeza procedimental em São Paulo. DADOS, v. 63, n. 1, 2020.

COSTA, Arthur Trindade Maranhão; DURANTE, Marcelo Ottoni. A polícia e o medo do crime no Distrito Federal. DADOS, v. 62, n. 1, 2019.

RIBEIRO, Ludmila. A produção decisória do sistema de justiça criminal para o crime de homicídio: análise dos dados do estado de São Paulo entre 1991 e 1998. DADOS, v. 53, n. 1, 2010.

BEATO, Cláudio; SILVA, Bráulio Figueiredo Alves da; TAVARES, Ricardo. Crime e estratégias de policiamento em espaços urbanos. DADOS, v. 51, n. 3, 2008.

OLIVEIRA, Adriano. As peças e os mecanismos do crime organizado em sua atividade tráfico de drogas. DADOS, v. 50, n. 4, 2007.

VELHO, Gilberto. Violência e cidadania. DADOS, v. 23, n. 3, 1980.

SCHWARTZMAN, Simon. Da violência dos nossos dias. DADOS, v. 23, n. 3, 1980.

CAMPOS, Edmundo. Sobre sociólogos, pobreza e crime. DADOS, v. 23, n. 3, 1980.

OLIVEN, Ruben George. A violência como mecanismo de dominação e como estratégia de sobrevivência. DADOS, v. 23, n. 3, 1980.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência do Estado e classes populares. DADOS, v. 22, n. 3, 1979.

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