Negócio fechado (Out of business)

Naomi Oreskes (Universidade de Harvard) e Erik M. Conway (Instituto de Tecnologia da Califórnia)


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Como um “grande mito” vendeu ao povo americano a magia do mercado[i]

Desde a ascensão ao poder de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher no Reino Unido, as políticas públicas americanas e britânicas têm sido fortemente influenciadas por um “grande mito”. É a ideia de que os mercados não são apenas economicamente eficientes, mas que se pode confiar neles para funcionarem bem e com sabedoria. Na verdade, tão bem que não precisamos muito do governo. Os governos só precisam “sair do caminho” e deixar que os mercados “façam a sua magia”.

Chamamos esta visão de “fundamentalismo de mercado”, porque muitas vezes ela assume a qualidade da fé religiosa, como quando o professor da Universidade de Nova Iorque, Jonathan Haidt – um participante regular em talk-shows dos EUA e no Fórum Econômico Mundial em Davos – argumenta “não ser louco por adorar os mercados”. Ou, ainda, quando a economista da escola de Chicago, Deirdre McCloskey, faz o sinal da cruz em menção de Adam Smith. Margaret Atwood coloca desta forma em seu livro Payback: Debt and the Shadow Side of Wealth Management: em algum momento do século 20 “as pessoas começaram a substituir Deus por algo chamado ‘o Mercado’, atribuindo-lhe as mesmas características: onisciência, estar sempre certo e a capacidade de fazer ‘correções’, algo que, tal como o castigo divino de antigamente, teve o efeito de exterminar muitas pessoas”. A “mão invisível” de Adam Smith era uma alusão óbvia à mão de Deus.

As economias baseadas no mercado produziram riqueza substantiva, no entanto elas também criaram problemas devastadores. Desde as “sombrias fábricas satânicas” e o capitalismo monopolista do final do século XIX, passando pelas crises gêmeas de lesões paralisantes no local de trabalho e a Grande Depressão do início do século XX, até à nossa atual desigualdade de rendimentos impressionante e perturbações climáticas perigosas, as falhas de mercado têm sido frequentes e repletas de consequências. Quando estas falhas foram remediadas, isso não se deu através dos mercados corrigindo a si próprios, mas sim através de ações governamentais para restringir os mercados, redistribuir a riqueza ou satisfazer as necessidades humanas negligenciadas pelos mercados.

Por que tantas pessoas aceitaram uma visão de mundo que a história mostrou ser, na melhor das hipóteses, inadequada? Uma parte da resposta envolve uma longa história de propaganda – liderada por líderes empresariais americanos – para nos persuadir da sua verdade. A história começa no início do século 20, com um debate sobre a eletricidade.

 

Eletricidade para todos

A introdução da eletricidade no início do século 20 revolucionou o transporte e a recreação. As cidades instalaram luzes elétricas que permitiram caminhar com segurança à noite; os bondes elétricos permitiram o desenvolvimento de subúrbios, parques de diversões nos extremos de suas linhas e passeios pelo campo. A eletricidade tornou possível a linha de montagem de Henry Ford, juntamente com inúmeras outras inovações industriais. Também transformou o lar americano, substituindo lâmpadas a gás sujas e perigosas e abrindo caminho para eletrodomésticos que tornaram o trabalho doméstico menos árduo. No início da década de 1920, a maioria dos americanos urbanos tinha eletricidade em suas casas. Mas a América rural foi negligenciada.

A geração de eletricidade nos EUA foi sobretudo obra de empresários – os famosos Thomas Edison e George Westinghouse – e das empresas privadas que puseram a sua maquinaria a funcionar, como a Edison Electric. Os homens e suas companhias foram extraordinariamente bem-sucedidos; Edison e Westinghouse tornaram-se nomes conhecidos. Mas não tinham encontrado uma forma de levar eletricidade aos clientes rurais com lucro. Em 1925, a General Electric colocou desta forma: “o poder de compra de (…) 1,9 milhões [agricultores] é demasiado baixo para os colocar na classe de clientes potenciais”.

Em muitos outros países, a eletricidade era vista não como uma mercadoria a ser comprada e vendida com lucro, mas como um bem público que exigia governança para garantir uma distribuição equitativa. O contraste nos resultados foi gritante: na década de 1920, quase 70% dos agricultores do norte da Europa tinham eletricidade, mas menos de 10% dos agricultores dos EUA tinham. Para piorar a situação, muitas empresas privadas eram corruptas, cobrando caro demais dos clientes e depois manipulando as contas para fazer parecer que não era assim. Neste contexto, lideranças americanas começaram a argumentar que o governo precisava de se envolver na produção e distribuição de eletricidade. Em resposta, a National Electric Light Association (NELA) lançou uma campanha massiva para persuadir o povo americano de que as suas necessidades poderiam ser melhor satisfeitas se o governo não só deixasse os mercados de eletricidade em paz, mas todos os mercados. Eles fariam isso insinuando seus pontos de vista na educação americana.

 

A influência dos ‘experts’

A campanha acadêmica da NELA tinha três elementos principais: primeiro, recrutaram especialistas para produzir estudos que “provassem” (ao contrário do que a maioria dos observadores independentes havia descoberto) que a eletricidade privada era mais barata do que a eletricidade pública. A NELA encontrou propagandistas dispostos em faculdades de todo o país. Um professor da Universidade do Colorado recebeu U$1.692,33 – à época, cerca de um ano inteiro de salário acadêmico – por uma pesquisa de custos em usinas de energia municipais no Colorado; não é de surpreender que suas conclusões tenham sido desfavoráveis às usinas municipais. Na Universidade de Iowa, um professor de engenharia elétrica foi pago para preparar uma série de relatórios favorecendo a geração privada de eletricidade; a NELA distribuiu o relatório “tão amplamente quanto pudemos legitimamente”. Passariam anos até que os americanos soubessem que estes estudos tinham sido encomendados pela indústria eléctrica e que os seus autores tinham sido informados do que precisavam dizer.

Os executivos da NELA passaram então para a segunda fase: reescrever os livros didáticos americanos e, na verdade, a história americana. Recrutaram e pagaram a acadêmicos para reescreverem livros escolares, de modo a torná-los mais entusiasmados com a eletricidade privada e o capitalismo empresarial, em geral, e pressionaram os editores a modificar ou retirar livros escolares que a NELA considerasse questionáveis.

Percebendo que pressionar os acadêmicos e as editoras poderia ser considerado inapropriado, a NELA trabalhou para obter a cooperação das grandes editoras, com base na teoria de que, uma vez que fossem “resolvidas e estivessem a trabalhar conosco, as pequenas editoras irão naturalmente alinhar-se”. Quando um novo texto se mostrava satisfatório, o NELA ou seus membros pagavam para que cópias fossem amplamente distribuídas. No Missouri, por exemplo, a St. Joseph Gas Company ajudou a pagar cópias de um novo livro a ser enviado a todos os diretores de escolas secundárias do estado.

Embora os figurões da NELA cantassem louvores aos mercados competitivos, o objetivo a curto prazo era evitar a concorrência dos serviços públicos municipais. A longo prazo, o objetivo não era apenas promover uma visão positiva da indústria elétrica americana, mas também uma visão positiva do capitalismo e uma visão negativa do envolvimento do governo nos assuntos econômicos. Neste contexto, a NELA introduziu duas ideias que se revelariam cruciais em quase todos os argumentos posteriores sobre as virtudes do capitalismo de livre mercado e os perigos da ação governamental no mercado. A primeira foi a alegação de que o envolvimento do governo no mercado era um afastamento da história dos EUA. A segunda foi a afirmação de que o capitalismo de livre mercado era a personificação da liberdade, em grande escala, e que qualquer restrição à liberdade de qualquer negócio colocaria o público americano numa ladeira escorregadia para a tirania. Em depoimento posterior à Comissão Federal de Comércio (FTC), os observadores destacaram que o secretário do Comitê de Informações de Serviço Público de Connecticut da NELA admitiu que as declarações da indústria visavam tanto “a intenção de desacreditar a propriedade municipal”, como influenciar as crianças (como futuros eleitores) para rejeitar quaisquer pensamentos simpáticos à propriedade e regulamentação estatais.

O terceiro componente da campanha acadêmica foi a intervenção direta em programas universitários para desenvolver currículos pró-laissez faire e anti-regulamentação. Programas de “relações recíprocas” foram estabelecidos em todos os EUA, incluindo na Washington State University, Penn State, Harvard, Northwestern e Purdue; faculdades agrícolas estaduais em Nebraska, Colorado e Missouri; e a Instituição Smithsonian. As somas oferecidas para apoiar essas relações foram substanciais: em 1925, a Northwestern recebeu US$ 25.000; em 1928, Harvard recebeu US$ 30.000 – o equivalente a cerca de US$ 500.000 hoje. O objetivo era apoiar o desenvolvimento de cursos e programas em negócios e economia cujos currículos fossem organizados em torno dos princípios da livre iniciativa e da propriedade privada como bases para o crescimento econômico, a prosperidade e a liberdade. Influenciar o que foi ensinado nas faculdades e universidades seria a “vitória” definitiva para a NELA. Como disse um executivo: “as faculdades podem dizer coisas que não podemos dizer e nas quais não vão nos acreditar”.

 

O plano da desinformação

Visto superficialmente, a NELA perdeu a luta; foi desacreditada e dissolvida. Mas reagrupou-se no Edison Electric Institute, que existe hoje e continua a ser um poderoso lobby. Apesar da eletrificação rural do New Deal, os Estados Unidos ainda têm hoje um sistema elétrico predominantemente privado (cerca de 90%) que é menos fortemente regulamentado do que em muitos outros países. Em média, os clientes dos serviços públicos pagam cerca de 10% menos que aqueles privados e recebem serviço melhor. Quando foram feitas tentativas na década de 1990 para desregulamentar totalmente o sistema, foi um desastre para os consumidores. A empresa Enron manipulou o sistema antes de falir, e vários dos seus executivos foram presos por fraude, conspiração e abuso de informação privilegiada. A desregulamentação da eletricidade também se revelou um desastre para o Texas: quando a rede elétrica do estado falhou face a uma tempestade extrema de inverno em 2021, o resultado foi mais de 700 mortos e algo entre 80 e 130 bilhões de dólares em danos.

Os argumentos centrais desenvolvidos pela NELA também foram utilizados por outros grupos industriais, mais notavelmente o do tabaco e o dos combustíveis fósseis. Uma investigação da BBC mostrou recentemente como a indústria do gás americana segue dizendo que a ação do governo para resolver uma falha do mercado – neste caso: o custo social do carbono – é uma ameaça à liberdade pessoal, um exemplo de “exagero” do governo. E não é apenas a indústria do gás. “Eles não vão levar meu fogão a gás”, declarou o senador democrata da Virgínia Ocidental, Joe Manchin. É claro que ninguém está propondo ‘tirar’ nada de ninguém. A realidade é que se não fizermos algo para travar a crise climática que se desenrola, muitos de nós perderemos muito mais que um fogão a gás.

 

Vendo a luz

As falhas de mercado são uma característica, e não um defeito, do capitalismo. Apontar isso não é ser socialista, mas realista. A falha central de grande parte do pensamento atual – e não apenas do fundamentalismo de mercado, mas também do pensamento empresarial dominante – é deixar de lado esta realidade e afirmar, a exemplo do que fez recentemente o Wall Street Journal, que a única maneira de enfrentar as mudanças climáticas (assim como outros desafios prementes) é por meio do “progresso, em sua maior parte, não regulado dos mercados e da tecnologia”. Chegou a hora de uma discussão séria sobre como repensar e reformar o capitalismo para lidar seriamente com seus custos sociais e ambientais.

 

*Trecho retirado e adaptado do mais recente livro de Naomi Oreskes e Erik Conway, intitulado “Big Myth: How American Business Taught Us to Loathe Government and Love the Free Market” (ainda sem tradução para o português – nota do tradutor). Disponível em: https://www.bloomsbury.com/us/big-myth-9781635573572/

[i] Fonte original: Oreskes, Naomi & Conway, Erik M. (2023), «Out of Business». RSA Journal, Londres. Este texto foi traduzido por José Szwako, com autorização dos autores e da RSA Journal. O original pode ser lido e acessado em: https://www.thersa.org/journals/2023/issue-2/feature/out-of-business

Como citar este post

ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M.  (2024), «Negócio fechado (Out of business)». Tradução: José Szwako. Blog DADOS, 2024 [published 12 Mar. 2024]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/negocio-fechado-out-of-business/

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