“Achatar a curva”: estética, topografia e moralidade da pandemia

Eugênia Motta (Iesp-Uerj)


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As notícias começaram a chegar por meio da imprensa de maneira tímida. Na China, esse lugar distante, uma nova doença começava a se alastrar. Causada por um vírus desconhecido, se espalhava rapidamente. Sem clareza sobre a gravidade da enfermidade, sua letalidade ou capacidade de transmissão, observávamos, há semanas, com curiosidade e alguma apreensão. Hoje, o vírus toma conta de nossas vidas individuais e coletivas em todos as escalas possíveis. Se, como agente infeccioso, podemos tentar mantê-lo longe das nossas mucosas, não há como ficar alheio à sua forma mais amplamente difundida: os números e suas apresentações gráficas.

Dados estatísticos que representam a quantidade de infectados e mortos, seu crescimento e as supostas tendências de disseminação da doença, são atualmente os principais objetos de atenção e debate em torno da pandemia de Covid-19 e de como administrá-la. As estatísticas sobre a doença fazem parte do que Theodor Porter chama de “números públicos” e o que Alain Desrosières chama de “grandes números”. Esse tipo de número serve, basicamente, para criar problemas. Explico. Um monte de indivíduos enfermos não constitui uma pandemia. É preciso que haja um nome para a doença, que existam instituições e pessoas para classificar os indivíduos como contaminados, assim como outras que reúnam os dados em quantidade cada vez maior, os interpretem e comuniquem análises. Esses processos – uma verdadeira “cadeia de transformações”, como sugere Laurent Thévenot –, ocorre por meio de traduções, convenções, codificações. As estatísticas são uma forma de criar novas entidades – a pandemia, por exemplo – que passam, assim, a constituir problemas coletivos aos quais podemos nos dirigir. Como vários autores dos estudos sociais da quantificação mostram, os números passam a ser uma linguagem comum, nos dois sentidos da palavra: uma forma ordinária e compartilhada de se falar.

Com isso não quero dizer que a doença não exista de fato, ou que não seja uma realidade precedente a qualquer construção estatística conceitual. Mas para que ela se tornasse uma questão que nos mobiliza coletivamente, todo esse trabalho de quantificação precisou ser feito, e o que se chama de pandemia é um exemplo de uma “nova entidade”. Retomo Theodor Porter, que também mostra que a estatística é uma forma de “falar à distância”, ou seja, trazer para atenção das pessoas realidades às quais elas não têm acesso por meio da observação direta. É nessa transformação, de realidades difusas e experimentadas apenas por aqueles diretamente afetados por elas em questões públicas e problemas coletivos, que as estatísticas se constituem como um trabalho criativo.

A produção e disseminação de números é imensa, mas o que me chama mais atenção durante essa crise é o gráfico no qual se baseia a ideia de “achatar a curva” como o principal objetivo a ser perseguido por governos e pessoas e usado comumente na defesa do isolamento social como estratégia eficiente de enfrentamento à doença. É uma das imagens mais difundidas na internet e, certamente, quem estiver conectado, seguindo minimamente as notícias, já a viu diversas vezes e em distintas versões. Ele se tornou não apenas uma imagem comum, mas também a forma privilegiada de se falar sobre e durante a pandemia. Mas como e por quê um gráfico atinge essa capacidade metonímica tão poderosa? Vamos a algumas ideias, mas antes, uma descrição rápida.

Veja o gráfico abaixo. Ele mostra duas curvas. Elas são desenhadas tendo como referência o eixo vertical, correspondente ao número de pessoas infectadas e o eixo horizontal, relativo ao tempo. As duas curvas representam um mesmo número de casos, mas distribuídos de maneira distinta ao longo dos dias. O fundamental é a linha horizontal traçada a partir de um certo número de casos, que representaria a capacidade dos serviços de saúde de oferecerem leitos para tratamento intensivo, que, no caso dos doentes graves de Covid-19, pode durar muitos dias. Uma das curvas em formato de sino, bem mais alta e estreita, ultrapassa em muito a linha reta que representa a capacidade dos hospitais e a outra, bem mais larga e baixa, fica abaixo dela. A relação mostrada, portanto, é entre o número de doentes, o tempo e a quantidade de casos que os serviços de saúde são capazes de atender.

 

 

Há um relativo consenso – com exceções com que, infelizmente, os brasileiros precisam conviver – de que a doença causada pelo novo coronavírus é uma realidade objetiva, cuja existência independe de interpretações pessoais e opiniões próprias. O negacionismo extremo – a ideia de que a Covid-19 é uma ficção – é, sem dúvida, uma posição minoritária. Pode-se dizer, portanto, que o vírus existe, que se espalha segundo mecanismos naturais e as consequências para os infectados se dão sobre seus corpos biológicos. Por se tratar de uma realidade desse tipo, é no campo da ciência que a doença e suas consequências devem ser tratadas. As estatísticas, sejam elas usadas nos laboratórios biomédicos ou nas instituições estatais de produção de números públicos, são consideradas a linguagem legítima para se abordar tais fenômenos e acionam a intervenção de grupos específicos de especialistas, como os epidemiologistas e médicos. Os gráficos, portanto, são ao mesmo tempo consequência e parte da construção da pandemia como objeto do conhecimento científico e demandante de intervenção racional e calculada.

Entre as diversas formas de uso das estatísticas, os gráficos são os que se beneficiam diretamente de aspectos estéticos para comunicar relações entendidas como relevantes. A apreensão das relações entre variáveis que as operações de quantificação produzem, convertidas em desenhos, é mais imediata e, dependendo dos próprios dados e das escolhas formais na sua construção, conduzem mais facilmente a certas leituras. Os gráficos podem prescindir, inclusive, das informações técnicas que seriam exigidas, por exemplo, em trabalhos acadêmicos. Em muitas versões que circulam do gráfico específico de que estou tratando, não constam escalas ou fontes das informações. O aspecto estético desse gráfico é tão relevante na argumentação sobre a necessidade de isolamento social, que em muitos casos ele não apresenta qualquer dos elementos de um artefato técnico. Em outros, é emprestado apenas como referência, que só poderia ser efetiva supondo-se que as pessoas conhecem a imagem “original” e o que ela comunica. A capacidade de transmitir de forma clara e rápida um argumento e acionar associações complexas de maneira simples tornou esse gráfico a imagem mais expressiva das últimas semanas, fornecendo uns dos principais elementos para o que proponho chamar de estética da pandemia.

Diversas apresentações do gráfico o mostram também como participante de uma moralização das ações frente à pandemia, ou seja, como um recurso de defesa daquilo que seria correto fazer. Essa moralização em torno dos comportamentos vai desde as políticas públicas nacionais, com imagens sendo fornecidas como justificativas para ações governamentais, até a escala individual. Isso se expressa de maneira simples, como o uso de cores ou apresentação de figuras mais elaboradas. Em vários casos a área formada pela curva mais alta é pintada de vermelho e a área da curva mais baixa de azul ou verde. Um gif que circulou muito e cujas legendas foram traduzidas em diversas línguas mostra abaixo das curvas duas figuras humanas. A que corresponde à curva mais alta mostra um homem de braços abertos e expressão de desdém. As legendas variam, mas numa delas ele diz “É só uma gripezinha”.  Sob a curva mais baixa há a imagem de uma mulher, com as mãos ensaboadas e a legenda mostra frases como “Precisamos nos cuidar”. Outro caso comum de uso da curva é o seu acompanhamento com frases dirigidas aos indivíduos, por exemplo, “Ajude achatar a curva. Fique em casa”.

A capacidade de números e suas representações de produzirem simplificações eficientes (e aqui não há nenhuma crítica a isso) é tão grande que esses acabam por tomar o lugar dos fatos e relações primários que pretendem apresentar – nesse caso, a doença, sua disseminação material – e tornam-se eles mesmos os objetos da ação. A preocupação em desacelerar a velocidade de contaminação e assim garantir que haja leitos, profissionais e equipamentos hospitalares suficientes para atender os doentes graves e, assim, diminuir o número de mortes, pode ser formulada, simplesmente, assim: “temos que achatar a curva”. Esse não é apenas um recurso discursivo, uma mera metonímia. De fato, as próprias estatísticas passam a ser o objeto de preocupação, especialmente dos gestores públicos, já que as mortes em si só podem ser experimentadas pelas pessoas próximas ao finados.

Pelo pouco tempo em que esteve em debate, o chamado “isolamento vertical” fez coincidir esteticamente esse tipo de proposta com a topografia sugerida pela imagem do gráfico: a verticalidade da curva “ruim” podia ser facilmente associada à sugestão de que apenas as pessoas do chamado “grupo de risco” devessem evitar contato com outros indivíduos e permanecer em casa. Embora a expressão “vertical” não tivesse nada a ver com o eixo do gráfico que mostrava o número de doentes, o argumento substantivo tinha e as formas e vocabulário produzidos por meio da quantificação foram, em mais esse caso, transportados de maneira indireta para compor novos significados.

Outro aspecto importante desse gráfico é seu horizonte temporal de maneira mais ampla e, especialmente, sua pretensão preditiva. Por meio de uma série de operações matemáticas e segundo modelos epidemiológicos, seria possível desenhar (literalmente, nesse caso) futuros possíveis e, mais precisamente, duas versões dele, segundo o uso, ou não, de medidas de distanciamento. Por mais que a curva mais estreita e alta nos revele a possibilidade de um futuro catastrófico com o “colapso do sistema de saúde”, ainda assim, apresenta um horizonte possível. Caso haja medidas de isolamento, o futuro pode não ser tão ruim. Ao oferecer a ideia de previsibilidade e, ao mesmo tempo, de possiblidade de algum controle sobre a pandemia, o gráfico também fornece algum alívio diante de toda incerteza da situação. Minha hipótese é de que esse gráfico é sedutor, também, porque nos oferece um artefato visual que constrói a pandemia como algo que, assim como teve um começo, terá também um fim (as duas curvas descendem até o ponto zero do eixo vertical), embora, ausente a métrica no eixo referente ao tempo, não saibamos quando será.

Hoje a grande questão no Brasil é quando atingiremos “o topo da curva”. Nesse caso também a topografia é expressiva da expectativa em relação à temporalidade da pandemia de maneira mais direta e serve como forma de tematizar a possibilidade de “afrouxamento” das medidas de isolamento. O ápice da “nossa” curva é o pior momento, mas só saberemos retrospectivamente que ele ocorreu, porque só ficará claro quando estivermos “descendo”.

As estatísticas e seus modelos preditivos são muito eficientes em proporcionar uma certa segurança – previsibilidade, circunscrição temporal – e esse é um dos motivos pelos quais se tornam tão importantes em tempos de crise. Mas talvez haja uma certa opção pública pelo gráfico “achatar a curva” em detrimento de outras imagens e contas mais assustadores que mostram, por exemplo, que as curvas de contaminação e mortes em uma pandemia, em geral, são mais sinuosas, apresentando subidas e descidas, não havendo um único ponto culminante a partir do qual tudo só melhora.

A imagem do gráfico das duas curvas se tornou tão difundida que ultrapassou a tematização da pandemia. Já há versões, por exemplo, que substituem o eixo que representa os contaminados pelo suposto consumo de recursos naturais e mostra a linha, não correspondente à limitação de casos que os hospitais podem tratar, mas ao limite ambiental de recursos não renováveis. A mensagem que acompanha a imagem é “vamos achatar essa curva também”. Há, ainda, piadas com referência à imagem circulando nas redes sociais: “Como faço para achatar a curva do meu mau humor?”.

A enorme difusão do gráfico das duas curvas como referência estética, moral e discursiva durante a pandemia demonstra a grande capacidade das estatísticas e seus usos de produzirem artefatos capazes de circularem de maneira incrivelmente rápida e eficiente. Isso acontece por sua capacidade redutora e simplificadora por meio de uma enorme condensação de sentidos, muitos deles compreensíveis em termos de seus antecedentes históricos, mas outros completamente inovadores e inéditos.

Afirmar o caráter de construção social ou apontar para o que chamei de “simplificações” não são formas de criticar e, muito menos, uma tentativa de denunciar as estatísticas ou seus usos como “falsos” ou enganosos. Pelo contrário. O que tentei demostrar aponta para esses artefatos e a linguagem dos números como uma forma de criar e perpetuar noções de coletividade e compartilhamento. Não é à toa que governos autoritários hoje se voltem contra todos os esforços, incluídas as ciências, da afirmação da nossa humanidade e naturezas comuns. Toda linguagem “simplifica”, no sentido de que todo significado é uma “simplificação”, a construção de um ponto comum, a “redução” de múltiplas experiências individuais em termos que nos permitam comunicá-las e, assim, reconhecer bases compartilhadas de existência para que sejam possíveis as relações.

“Achatar a curva” vai ser, provavelmente, uma expressão duradoura, parte da memória da pandemia a ser incorporada na forma como enxergamos a nossa relação com forças incontroláveis e com limitações da capacidade humana de lidar com suas consequências. Esse pode ser o sentido filosófico de fundo que o gráfico carrega e talvez seja, também por isso, que ele nos sensibilize tanto.

A importância da expressão “achatar a curva” e de sua centralidade durante a pandemia de Covid-19 demonstra não apenas a estatística como uma linguagem comum, como muitos cientistas sociais e historiados da quantificação já argumentaram sobre os grandes números, mas também como a compreensão da vida social dessa tal curva pode ser uma das maneiras pelas quais se pode refletir sobre a pandemia como experiência humana. Caberá, no futuro, uma investigação minuciosa sobre a difusão de suas diversas apresentações e apropriações como parte da análise sobre esse momento histórico.

Como citar este post

MOTTA, Eugênia. “Achatar a curva”: estética, topografia e moralidade da pandemia. Blog DADOS, 2020 [published 29 May 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/estetica-da-pandemia/

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