Dados é uma das principais e mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil. Criada em 1966, divulga trabalhos inéditos e inovadores, oriundos de pesquisa acadêmica, de autores brasileiros e estrangeiros. Editada pelo IESP-UERJ, é seu objetivo conciliar o rigor científico e a excelência acadêmica com ênfase no debate público a partir da análise de questões substantivas da sociedade e da política.
1. Introdução
A capacidade dos povos tradicionais de defenderem, perante o Poder Judiciário, os seus direitos e interesses foi uma vitória dos movimentos indígenas e de seus aliados na elaboração da Constituição de 1988.[1] A previsão contida no art. 232 do texto constitucional, que reconheceu os índios, suas comunidades e organizações como “partes legítimas para ingressar em juízo”, representou a quebra de um importante obstáculo à garantia da autonomia dos povos indígenas e, em última análise, à defesa dos seus modos de vida.
Até então, as interações entre índios e não-índios no Brasil obedeciam a um regime tutelar, calcado na concepção racista e colonialista de que os povos indígenas seriam coletividades em estágio inferior de civilização, o que impedia que propusessem diretamente ações judiciais.[2] Essas demandas somente seriam apreciadas caso fossem apresentadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão federal que detinha a capacidade jurídica exclusiva para a sua representação. Como grande parte das querelas das populações tradicionais diziam respeito justamente a condutas da Funai e da União, ou contrariavam os seus interesses, esse quadro normativo significava que, na prática, os índios não tinham acesso à justiça.[3]
Passados pouco mais de 30 anos da consagração constitucional dessa capacidade postulatória, o acesso à justiça volta a ser objeto de reivindicação do movimento indígena. Dessa vez, no contexto dramático causado pela epidemia do novo coronavírus, por meio da decisão da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) de demandar diretamente a proteção dos direitos e interesses dos povos indígenas perante o Supremo Tribunal Federal (STF), através da ADPF nº 709.
2. Coronavírus e saúde indígena: nova crise, velhos problemas
O desempenho pífio do governo federal no enfrentamento da pandemia causada pela Covid-19 dispensa maiores digressões: o país está há meses sob o comando de um Ministro da Saúde interino; vem investindo em medicamentos sem eficácia cientificamente comprovada; e só gastou, até o momento, 24,9% dos créditos suplementares aprovados pelo Congresso Nacional para combater a crise sanitária. Se a situação geral da saúde pública é ruim, ela é certamente pior para as populações tradicionais, que testemunham o agravamento de velhos problemas relacionados à concretização do seu direito de acesso aos sistemas de prevenção e tratamento de doenças.
A falta de estrutura, de medicamentos e de equipamentos adequados para o atendimento à saúde ainda é uma constante nas políticas públicas sanitárias voltadas ao atendimento dos povos indígenas. A essas carências de ordem material e logística geralmente se soma o preconceito contra os modos de ser e de existir das populações tradicionais, o que contribui para que os indígenas apresentem índices de morbidade e de mortalidade muito superiores àqueles verificados no restante do país.[4] Não bastasse, essas mazelas vêm sendo potencializadas pelo atual governo federal, cuja repulsa à agenda indigenista não se restringe a discursos altamente discriminatórios, mas também se manifesta em atos concretos, como a redução de investimentos no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) e o abandono da política constitucional de demarcação de territórios indígenas.
Na presente crise sanitária, esse grave cenário vem ganhando dimensões catastróficas pela inércia do governo federal em impor barreiras sanitárias de proteção aos povos isolados e de recente contato; pelo estímulo constante à presença de invasores (como garimpeiros e grileiros) em terras indígenas, o que aumenta o risco de propagação da doença; e pela recusa da atual administração da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, em prestar atendimento a todos os índios, independentemente do seu local de residência. Assim, se os povos indígenas já apresentam maior vulnerabilidade socioepidemiológica[5] – decorrente de um conjunto de fatores individuais e coletivos que os tornam mais suscetíveis a adoecer e a morrer em função de doenças infecciosas –, as falhas governamentais em reduzir sua exposição à Covid-19 e em garantir o seu atendimento à saúde têm o potencial de causar o extermínio de grupos étnicos inteiros, com o total desaparecimento de suas culturas.
Diante do risco real de genocídio, a APIB decidiu demandar diretamente ao STF, órgão a quem cabe a missão institucional de garantia da Constituição,[6] que o Estado brasileiro adote providências necessárias para assegurar a saúde e a vida dos povos indígenas. Como se antecipou, a ADPF nº 709 também pretende afirmar a legitimidade dos povos indígenas para postular a defesa dos seus próprios interesses perante a mais alta corte do país. Cuida-se, afinal, de reconhecer a essa população o protagonismo em questão jurídica relativa à sua própria sobrevivência.
3. Participação e deliberação: a ADPF nº 709 e o protagonismo dos povos tradicionais no enfrentamento da pandemia
Através da ADPF nº 709, os povos indígenas buscam coletivamente, perante o STF, desbloquear os canais de formulação e execução de políticas públicas. As comunidades tradicionais desejam ser ouvidas pelos órgãos públicos para veicular demandas e insatisfações com as medidas (não) adotadas pelo Executivo. Ao mesmo tempo, tentam, por meio do acesso à justiça e do debate público, encontrar soluções para enfrentar a pandemia.
Nesse contexto, o recurso da APIB ao Poder Judiciário pode ser compreendido como uma ação estratégica voltada ao aprimoramento da participação democrática e da dimensão deliberativa da democracia.
A respeito da participação, verifica-se que, no Brasil, o acionamento direto ao STF por meio de ações do controle concentrado de constitucionalidade é restrito a determinados legitimados, dentre os quais figuram entidades de classe de âmbito nacional. Tradicionalmente, esse grupo era interpretado como sendo restrito a categorias profissionais e econômicas, deixando de fora as entidades nacionais que representam outros segmentos da sociedade, como grupos vulneráveis e minorias. Mediante a propositura da ADPF nº 709, a APIB pretende colaborar para a reversão desse quadro, reclamando o justo reconhecimento das organizações nacionais de representação dos povos indígenas entre as entidades que merecem acesso direto a esse lócus privilegiado de proteção a direitos fundamentais, sem depender de tantas intermediações e traduções por agentes públicos.[7]
Deve-se observar, nesse sentido, que a ADPF nº 709 conta com a adesão dos principais partidos de esquerda e centro-esquerda do país, que figuram como coautores da demanda. Essa participação, longe de retirar o protagonismo dos índios na tutela dos seus direitos, teve o objetivo de fortalecer a demanda formulada ao STF, por duas razões principais. A primeira é de ordem formal: como partidos políticos têm legitimidade universal para a propositura de ações de controle concentrado no STF, caso a corte se recusasse a reconhecer a capacidade postulatória da APIB, o processo não poderia ser extinto por razões processuais. A segunda é de ordem material: a adesão de múltiplos atores políticos aos pedidos e às razões formuladas pelos povos indígenas dá a ADPF ainda mais força, demonstrando a importância do problema debatido e suas repercussões extrapartidárias.
Os povos tradicionais, representados pela APIB, também esperam que, com o acesso à jurisdição constitucional, possam contribuir para elaborar, ajustar e implementar uma política pública de saúde indígena. A ampliação do acesso à Corte pela sociedade civil não só é desejável normativamente, como, descritivamente, condiz com o desejo do Constituinte de aumentar a participação da sociedade civil nas discussões sobre o sentido da Constituição.[8] No caso dos índios, trata-se de uma vitória no processo constituinte, já que, como visto acima, a abertura do Judiciário aos povos tradicionais resultou na edição do art. 232 da Constituição.
Os pedidos deduzidos na ADPF também envolvem uma reivindicação à participação direta dos povos indígenas na formulação das políticas públicas que lhes dizem respeito. A APIB, a partir das diversas comunidades que a compõem, elaborou o Plano de Enfretamento à Covid-19, que resultou em diversos argumentos e pedidos levados ao conhecimento do STF. Portanto, a ação judicial tem um duplo efeito democrático-participativo: pretende que os povos tradicionais possam discutir, perante a Corte Constitucional, a violação dos seus direitos e busquem tutela específica para salvaguardá-los e, ao mesmo tempo, intenta, por meio do Judiciário, forçar o Executivo a adotar medidas para mitigar o impacto da pandemia, em conjunto com os índios.[9]
A ADPF nº 709 possui também uma pretensão deliberativa. O acesso ao STF permite dar visibilidade às omissões estatais, que vêm causando muitos óbitos entre os integrantes das populações tradicionais, e possibilita aos afetados que apresentem suas razões e suas perspectivas. A lógica é que, dessa forma, seja possível enfrentar o “ponto cego” na política de saúde indígena. Por outro lado, a ação judicial pode permitir o desbloqueio do Executivo às demandas, soluções e razões desse grupo vulnerável, obrigando a criação de canais de deliberação que antes inexistiam. Sob essa ótica, trata-se de uma busca pela deliberação habermasiana[10] para solucionar conflitos (nos moldes da teoria crítica): os povos tradicionais recorrem ao debate público para assegurar as suas autonomias pública e privada. A ação judicial, ao promover a inclusão na esfera pública, visa a aperfeiçoar o processo democrático, pois permite a participação dos índios na busca por soluções para as violações a direitos que ameaçam a sua saúde e a sua existência, possibilitando que se vejam como coautores e destinatários dessas normas. Ao mesmo tempo, contribui para a promoção de direitos individuais e coletivos desses povos. A participação pode apaziguar os conflitos, ao salvaguardar o confronto dos argumentos e dos diversos pontos de vista e ao viabilizar a concretização dos direitos constitucionais dos povos indígenas.
4. Conclusão
Não se pretende que a ação resolva todos os problemas de saúde indígena relacionados à Covid-19. Entretanto, a articulação indígena já produziu alguns resultados positivos. O Ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, sensibilizado com as razões e com os fatos levados ao conhecimento do tribunal pelos próprios prejudicados, reconheceu a legitimidade da APIB para propor ação de controle concentrado no STF, o que foi recentemente ratificado, por unanimidade, pelo Plenário da Corte.[11] Além disso, deferiu, monocraticamente, boa parte dos pedidos liminares formulados, em decisão também referendada pelos outros membros do tribunal.
Até o momento, o debate público e as ações governamentais que estavam interditadas aos povos tradicionais foram parcialmente abertos a essa população vulnerável. Apesar da vitória momentânea, é preciso comemorar com cautela, visto que há, ainda, um longo caminho a percorrer, o que pressupõe garantir a efetividade da liminar, para que não sejam apenas belas palavras sobre direitos no papel.
Notas
[1] Manuela Carneiro da Cunha. (2018), “Índios na Constituição”. Dossiê 30 anos da Constituição. Novos estudos – CEBRAP. São Paulo. V.37, n. 03, pp. 429-443.
[2] Julio José Araújo Júnior. (2018), Direitos Territoriais Indígenas: uma interpretação intercultural. Rio de Janeiro: Editora Processo, p. 205.
[3] Dalmo de Abreu Dallari. (1979), “O índio, sua capacidade jurídica e suas terras”. In: A questão da emancipação. Cadernos da Comissão Pró‑Índio, n. 1, São Paulo, pp. 77‑82.
[4] Cf. E. A. Coimbra Carlos Jr. (2014), “Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena”. Cadernos de Saúde Pública, vol. 30, n° 04, pp. 855-859; e MARINHO, Gerson Luiz. et al. (2019), “Mortalidade infantil de indígenas e não indígenas nas microrregiões do Brasil”. Revista Brasileira de Enfermagem, vol. 72, n° 01, pp. 57-63.
[5] Douglas A. Rodrigues. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no Brasil. OTCA: São Paulo, 2014, p. 80. Disponível em: <https://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/sites/3/2017/08/Saude_PIIRC_-Douglas-Rodrigues.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2020.
[6] Diz o art. 102, caput, CF/88, que “[c]ompete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição […]”.
[7] Cf. PEREIRA, Jane. (2016), “O Judiciário como impulsionador dos direitos fundamentais: entre fraquezas e possibilidades”. Revista da Faculdade de Direito da UERJ – RFD, [S.l.], n. 29, p. 129. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/23669/16724>. Acesso em: 27 jul. 2020.
[8] Nesse sentido, Plínio de Arruda Sampaio, relator da subcomissão da Constituinte responsável pela organização do Judiciário e do Ministério Público afirmou: “[…] havia […] um clima que era importante dar peso à sociedade civil. No Brasil, o partido só ainda era uma coisa muito limitada. A ideia era não subordinar isso [o acesso] a interesses, deixar o mais possível aberto […]” (CARVALHO, Ernani. (2010), Política Constitucional no Brasil: a ampliação dos legitimados ativos na Constituinte de 1988. Revista da EMARF, Cadernos Temáticos, pp. 97-118). Na mesma linha, cf. KOERNER, Andrei; BARROS DE FREITAS, Lígia. (2013), “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo”. Lua Nova, vol. 88, pp. 141-184.
[9] Veja-se o pedido liminar da alínea b para que seja criada uma sala de situação Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais com a participação de representantes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e dos povos indígenas, estes indicados pela APIB.
[10] HABERMAS, Jürgen. (1997), Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
[11] STF. ADPF n° 709-MC, Rel. Min. Roberto Barroso, Decisão Monocrática, DJe 10/072020. Disponível em <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1118824/false>. Acesso em: 28 de jul. de 2020.
GOMES, Camilla; LOPES, Eduardo; PONTES, João. Democracia e saúde: o acesso dos povos indígenas ao Supremo Tribunal Federal na pandemia da Covid-19. Blog DADOS, 2020 [published 21 August 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/democracia-e-saude-dos-povos-indigenas/
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