Dados é uma das principais e mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil. Criada em 1966, divulga trabalhos inéditos e inovadores, oriundos de pesquisa acadêmica, de autores brasileiros e estrangeiros. Editada pelo IESP-UERJ, é seu objetivo conciliar o rigor científico e a excelência acadêmica com ênfase no debate público a partir da análise de questões substantivas da sociedade e da política.
Foto: Adriano Machado - REUTERS
A alteração da classificação do novo coronavírus de epidemia a pandemia[1] pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de março de 2020 acendeu o sinal de alerta de diversos governos nacionais ao redor do mundo acerca da necessidade e da urgência de políticas públicas voltadas para enfrentar a disseminação do vírus e os seus impactos nas áreas da saúde e da economia. O alerta não tem gerado, porém, mais cooperação multilateral. Este artigo visa a descrever cronologicamente e a analisar, ainda que brevemente, as ações de política externa brasileira (PEB) para prevenir e enfrentar a pandemia entre 1 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020. Nesta data, o Brasil contabilizava 5717 casos confirmados e 201 óbitos. Os dados discutidos a seguir foram baseados em notícias dos principais meios de comunicação digital do Brasil, em notas à imprensa nas páginas oficiais do Ministério das Relações Exteriores e da Presidência da República e em postagens realizadas nas contas do Twitter de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo.
Pode-se dividir as ações de política externa do governo brasileiro para enfrentar a pandemia em três frentes: 1) ações consulares voltadas para a promoção de assistência a brasileiros no exterior e sua repatriação; 2) ações migratórias voltadas para o controle do fluxo de estrangeiros para o Brasil e de brasileiros para o exterior; 3) ações diplomáticas voltadas para a representação do Estado brasileiro e a tomada de posicionamentos frente a outros Estados nacionais e organizações internacionais no que tange às questões da crise sanitária global da Covid-19.
Ações consulares
No que se refere às ações consulares, deve-se ressaltar que, com exceção da operação de repatriação de brasileiros em Wuhan (China), no começo de fevereiro, que enfrentou resistência inicial no âmbito do governo federal, até a primeira metade de março, não foram noticiadas pela imprensa ou informadas pelo Itamaraty ou pela Presidência medidas significativas do governo brasileiro nessa frente de ação de política externa. Desde meados de março, entretanto, as embaixadas e consulados brasileiros no exterior vêm monitorando a situação dos viajantes brasileiros que enfrentam dificuldades no exterior por restrições ligadas ao novo coronavírus. Além disso, o Itamaraty, o Ministério do Turismo, a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur) e a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) têm buscado agir conjuntamente a fim de auxiliar no retorno desses cidadãos para o país. Mais especificamente, a Secretaria de Relações Exteriores, em Brasília, e as embaixadas e o consulados-gerais do Brasil no exterior estão em contato permanente com as companhias aéreas para que essas ofereçam alternativas de retorno aos brasileiros que tiveram seus voos cancelados.
Visando a garantir o fretamento de aviões para trazer parte dos cidadãos brasileiros no exterior e prestar assistência consular em geral, o Itamaraty pediu ao Ministério da Economia a liberação de verba adicional. Em 24 de março foi noticiado que o governo prepararia uma medida provisória para destinar R$ 50 milhões a serem usados no resgate de brasileiros que estão impedidos de voltar ao país. No dia seguinte, foi noticiado que o Itamaraty pediu R$ 12 milhões ao Ministério da Economia, sem que a liberação da verba adicional tenha sido, até agora, comunicada pelo governo brasileiro.
Diante da sua resistência inicial à ideia de custear a repatriação de brasileiros por voos de carreira, o governo federal decidiu então, assim como fez no caso de Wuhan, na China, recorrer à Força Aérea Brasileira (FAB) para resgatar cidadãos brasileiros. Nesse sentido, em 24 de março, dois aviões C-130 (Hércules) decolaram do Rio de Janeiro em direção a Cusco (Peru), e realizaram o repatriamento de 66 brasileiros que se encontravam retidos em solo peruano.
Ações migratórias
Até meados de março não foi noticiada pela imprensa ou informada pelo Itamaraty ou pela Presidência nenhuma restrição significativa para a entrada de estrangeiros no território nacional ou para a ida de brasileiros ao exterior. A posição inicial do governo era de cautela ao falar de fechamento das fronteiras como solução para os problemas causados pelo novo coronavírus. Nesse primeiro momento, as ações migratórias do governo brasileiro consistiram na criação de um posto de vigilância sanitária na fronteira terrestre com a Venezuela no começo de fevereiro e de uma lista do Ministério da Saúde no final do mesmo mês com os países em alerta para o novo coronavírus, conforme orientação da OMS.[2] A partir dessa lista, passageiros que chegassem dessas localidades poderiam ser considerados casos suspeitos se apresentassem febre e outros sintomas associados à Covid-19, devendo assim receber atenção especial da vigilância sanitária brasileira.
A primeira ação migratória de caráter mais restritivo adotada pelo governo brasileiro consistiu na proibição da entrada de estrangeiros vindos de países fronteiriços por via terrestre por 15 dias em meados de março. Mais especificamente, a primeira medida que entrou em vigor inicialmente para estrangeiros vindos da Venezuela em 17 de março foi estendida no dia seguinte para Argentina, Bolívia, Colômbia, Guiana Francesa, Guiana, Paraguai, Peru e Suriname, e foi complementada em 22 de março pela restrição para estrangeiros vindos do Uruguai (neste último caso por um período de 30 dias).
Após a adoção de medidas voltadas para as fronteiras terrestres, as ações migratórias do governo foram direcionadas, a partir de 19 de março, para a restrição por 30 dias da entrada por via aérea de cidadãos estrangeiros vindos de regiões e países específicos. Por fim, essas restrições foram ampliadas em 26 e 27 de março para a entrada por 30 dias de qualquer estrangeiro pelos portos e aeroportos do país.
Ações diplomáticas
Nesse quesito, deve-se destacar que, assim como ocorrido na maioria dos governos nacionais ao redor do mundo[3], as ações do governo brasileiro foram marcadas por poucas iniciativas de coordenação e cooperação multilateral (global e regional). No âmbito das ações diplomáticas multilaterais, o governo brasileiro participou de reuniões virtuais sobre ações conjuntas para a crise do novo coronavírus do Fórum para o Progresso e Integração da América do Sul (Prosul), em 16 de março, do Mercado Comum do Sul (Mercosul), em 18 de março, e da reunião multilateral virtual do G20, em 24 de março. O governo brasileiro não se manifestou oficialmente sobre o seu posicionamento nessas reuniões, limitando-se apenas a divulgar a declaração final dos encontros.
Entretanto, vale destacar que Jair Bolsonaro foi o único presidente que não participou da videoconferência de chefes de Estado do Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), tendo o Brasil sido representado por seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Apesar de Bolsonaro ter alegado questões de agenda, sua decisão de não participar do encontro do Prosul pode estar relacionada com as tensões bilaterais do governo brasileiro com os governos argentino e venezuelano. Como a reunião representaria o primeiro contato após meses de tensão bilateral entre Bolsonaro e o recém-eleito presidente argentino Alberto Fernández, o governo brasileiro queria deixar claro que a reunião virtual tinha como objetivo único discutir a pandemia, sem espaço para conversas específicas entre Bolsonaro e Fernández nesse primeiro contato. Além disso, pesou na decisão brasileira o fato de o presidente argentino ter defendido claramente que, embora a Venezuela não faça parte do Prosul, seria um absurdo excluir qualquer país dos esforços de coordenação regional.
No âmbito global, deve-se destacar que Jair Bolsonaro levou à cúpula virtual do G20 o mesmo posicionamento que tem defendido internamente no combate à Covid-19, isto é, que as ações de proteção à saúde da população precisam estar aliadas a medidas de preservação de empregos e das empresas, tendo ressaltado o potencial do uso da hidroxicloroquina no tratamento do novo coronavírus, embora os resultados de pesquisas sendo feitas no Brasil (e no exterior) sobre seu uso terapêutico ainda não sejam conclusivos. Vale ressaltar que Bolsonaro, durante sua intervenção no G20, deixou à mostra a caixa de um medicamento de origem nacional feito à base do referido composto. A ênfase dada ao uso da hidroxicloroquina na intervenção de Bolsonaro está em sintonia com as medidas tomadas pelo Ministério da Saúde que informou que começará a recomendar sua aplicação em casos graves de Covid-19. Entretanto, deve-se destacar que o Ministério alertou que o medicamento não deve ser utilizado de forma irresponsável e sem acompanhamento médico.
Quanto a ações diplomáticas bilaterais, o governo brasileiro firmou em 25 de janeiro uma nota conjunta com o governo chileno para a facilitação do trânsito de seus nacionais. Segundo a nota, os cidadãos brasileiros, chilenos e estrangeiros residentes nesses dois países que estejam em trânsito internacional podem entrar no Brasil e no Chile, desde que não saiam da área internacional do aeroporto. Igualmente, ambos os governos se comprometeram a manter a coordenação para ampliar as facilidades aplicáveis aos casos de voos de repatriação por eles organizados.
Considerações preliminares sobre a conjuntura
A conjuntura inicial da crise sanitária confirma tendências e revela possíveis cenários futuros tanto na dimensão doméstica, quanto na dimensão internacional da PEB. No plano doméstico, a crise sanitária veio agudizar turbulências políticas e acirrar conflitos burocráticos, uma vez que o governo federal tem apresentado, ao longo desse período, visões distintas, total falta de coordenação entre atores burocráticos importantes e recomendações práticas discordantes entre o Presidente, seus ministros, governadores e prefeitos. O conflito não se restringe ao Executivo nas diferentes esferas, envolvendo o Congresso Nacional e suas lideranças, bem como o Supremo Tribunal Federal. O resultado nefasto para a sociedade tem sido a hiperpolitização da crise sanitária, com graves riscos de difusão descontrolada da Covid-19 e potencial aumento dos óbitos. Para a PEB os cenários de cooperação anunciam-se bastante inviabilizados no plano federal.
Entre as muitas motivações para o conflito, a conjuntura revelou, em primeiro lugar, que o Presidente e seus apoiadores mais próximos favorecem objetivos economicistas de curto prazo em detrimento das dimensões social e sanitária da crise. O Executivo federal não tem demonstrado celeridade e eficiência na implementação das medidas econômicas e sociais de apoio a empresas e trabalhadores decididas e votadas no Congresso. Em segundo lugar, a pandemia de Covid-19 evidenciou que, nesta primeira conjuntura crítica, houve enorme variação de apreço e respeito das instituições políticas em relação ao mundo da ciência e às recomendações médico-sanitárias emanadas da OMS, provocando reações negativas de segmentos da corporação médica e dos institutos nacionais e internacionais de pesquisa. Corolário dessa conjuntura, o medo das classes médias e médias altas tem despertado protestos nas redes sociais e “panelaços” às janelas das principais cidades do país, expondo rupturas no seio de alianças seladas desde pelo menos a campanha eleitoral de 2018.
No âmbito regional, o Brasil tem confirmado, também nessa conjuntura dramática para a América Latina, perda de sua capacidade de liderança em prol do crescimento da relevância da Argentina, cujo presidente tem seguido à risca as recomendações da OMS e da Organização Panamericana da Saúde (OPAS), mas também tem demonstrado preocupação efetiva com o contexto regional marcado por profundas desigualdades e diferentes formas de exclusão social. O Brasil impôs medidas restritivas, em primeiro lugar, à Venezuela, apesar de o país caribenho ter menos casos do que o Brasil no momento da decisão; do mesmo modo, os EUA não foram afetados em um primeiro momento pela medida de restrição de entrada por via aérea criada para os países da União Europeia e da Ásia, mesmo com os EUA já contabilizando grande número de casos. Ou seja, a crise da pandemia apontou ainda mais para a falta de concertação regional. É bem verdade que, em outros espaços regionais, tampouco tem havido esforços significativos de cooperação multilateral. Na União Europeia, os posicionamentos de Itália e Espanha diante dos Países Baixo e da Alemanha têm colocado em risco o próprio projeto político europeu.
A exceção regional tem sido a Ásia, onde China e países da ASEAN têm buscado maior cooperação. A China, diga-se de passagem, tem desenvolvido grande capacidade de cooperação nesse contexto, buscando reverter a narrativa histórica de “origem do vírus” à projeção de uma “diplomacia das máscaras”. Chamou a atenção que, apesar de necessitar de cooperação internacional no combate contra a pandemia, o governo brasileiro tenha, exatamente com a China e neste atual contexto, vivenciado preocupante crise diplomática a partir de mensagens ofensivas de um dos filhos do Presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, direcionadas a Pequim. Embora o Executivo federal tenha tentado costurar solução diplomática via chamada telefônica de Jair Bolsonaro a Xi Jinping, os beneficiários dessa crise parecem ter sido os governadores do Consórcio do Nordeste, aos quais o governo chinês prometeu o envio de equipamentos e insumos médico-sanitários.
Globalmente, o fato mais revelador dessa crise de pandemia para a PEB tem sido o isolamento normativo e político do governo brasileiro. A concepção de Jair Bolsonaro de que a pandemia seria uma “gripezinha” difere inclusive da atual posição de Donald Trump e Benjamin Netanyahu, tradicionalmente citados entre os principais parceiros da política externa bolsonarista. Até mesmo o Primeiro Ministro indiano Narendra Modi ordenou o lockdown. O negacionismo de Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis tem sido condenado mundialmente, constrangendo o Itamaraty que passa, também nessa agenda, de um papel de construtor de propostas normativas e de pontes entre o Norte e o Sul a mero defensor de ideologias obscurantistas sobre o papel da ciência na política. Pior ainda, o negacionismo de Bolsonaro que ressona nos corredores do Itamary também alimenta redes nacionais e transnacionais de teorias da conspiração.
Notas
[1] Em uma escala de gravidade, uma pandemia acontece quando uma epidemia se espalha entre populações de diversas regiões do planeta.
[2] A lista que inicialmente incluía 8 países do leste e sudeste da Ásia foi sendo ampliada e passou progressivamente a incluir também países da Europa, do Oriente Médio e da América do Norte.
[3] De acordo com Rubens Ricupero, essa ausência de coordenação e cooperação se deve em parte a termos investido enormemente em armamentos nucleares de dissuasão e muito pouco em sistemas de prevenção e combate a pandemias.
MARTIS DA COSTA, Hugo; MILANI, Carlos. Política externa e pandemia do novo coronavírus no Brasil: conjuntura entre 1/12/2019 e 31/3/2020, Blog DADOS, 2020 [published 3 April 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/politica-externa-e-pandemia-do-novo-coronavirus-no-brasil-conjuntura-entre-1-12-2019-e-31-3-2020/
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