Um federalismo centralizado

Marta Arretche


Ao longo da década de 2000, tive o privilégio de publicar três artigos em DADOS através dos quais pude divulgar os principais achados de uma agenda de pesquisa orientada a estudar o funcionamento de nosso sistema federativo, bem como suas consequências para a produção de políticas públicas. Estes artigos foram posteriormente reunidos em um livro, Democracia, Federalismo e centralização no Brasil, que recebeu menção honrosa no Concurso da ANPOCS de 2013.

Predominava à época na ciência política uma interpretação sobre nossas instituições federativas que enfatizava suas consequências negativas. Esta interpretação pode ser desdobrada em quatro argumentos básicos:

a) O federalismo brasileiro — e, em particular, o arranjo produzido pela Constituição de 1988 — conferiria excessiva autonomia aos governos subnacionais — em particular, os municípios. A evidência desta autonomia seria a elevada participação de estados e municípios no total da receita pública. Combinada à descentralização das políticas de serviços, também presente na CF 88, esta autonomia comprometeria a necessária coordenação nacional das políticas públicas, com consequências deletérias para a provisão descentralizada de bens públicos aos cidadãos.

b) Os governos subnacionais contariam com excessivo poder de veto nas arenas decisórias centrais. Em particular, o malapportionement — a representação desproporcional dos estados na Câmara e no Senado —, ao ferir o princípio do 1 homem = 1 voto — conferiria a uma minoria (de estados menos populosos) poder de veto sobre a vontade da maioria. Portanto, o federalismo brasileiro comprometeria a aprovação de medidas de interesse geral nas arenas legislativas federais.

c) O federalismo brasileiro, ao fortalecer interesses locais, seria responsável pela fragilidade dos partidos. O comportamento parlamentar dos representantes dos estados seria comandado por seus respectivos governadores, o que enfraqueceria a consolidação de partidos centralizados e nacionais.

d) Além de deletéria, nossa escolha por um arranjo federativo seria artificial, pois o Brasil não conta com as clivagens étnicas ou religiosas que deram origem às federações clássicas.

Do conjunto destes argumentos, emergia uma interpretação básica sobre o efeito institucional do modelo de federalismo adotado no Brasil: um governo central fraco, destituído de recursos para contrariar interesses regionais e coordenar políticas nacionais. Qualquer presidente, por mais virtuoso que fosse, teria grandes dificuldades para implementar uma agenda que contrariasse interesses de curto prazo de estados e municípios.

Esta interpretação, entretanto, contrariava achados de meus estudos na área de políticas públicas, que revelavam expressiva influência da União na regulação das políticas nacionais, desde que estas viessem a ter centralidade na agenda dos presidentes. As evidências neste campo mostravam que a ausência de coordenação de políticas nacionais era mais resultado de agência — isto é, limitada iniciativa na direção de produzir políticas nacionais nos governos Sarney, Collor e Itamar — do que resultado de um entrave produzido pelas instituições federativas. Nos anos 2000, quando comecei a estudar o tema, Fernando Henrique Cardoso já havia aprovado a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o Sistema Único de Saúde (SUS), para não falar no fechamento de bancos estaduais, entre outros, sem ter alterado qualquer das instituições do federalismo brasileiro aprovadas pela Carta de 1988.

Àquela altura, Argelina Figueiredo e Fernando Limongi já haviam publicado Executivo e legislativo na nova ordem constitucional, que apresentava evidências muito sólidas contrariando o argumento “c”. Já haviam demonstrado que as bancadas estaduais são partidárias. Não seguem a orientação de voto de seus respectivos governadores. Também haviam demonstrado que presidentes contavam com recursos institucionais para montar e manter coalizões de governo que lhes garantiam implementar suas agendas.

Entretanto, ainda que Figueiredo e Limongi (1999) tenham demonstrado os amplos poderes do presidente da República no arranjo constitucional de 1988, não exploravam em que medida os poderes da União poderiam se superpor aos do presidente, produzindo um arranjo institucional ainda mais centralizado. Assim, minha agenda de estudos consistiu em examinar se haveria aspectos específicos ao federalismo, distintos daqueles próprios ao presidencialismo, que afetam a capacidade do executivo federal implementar sua agenda, em particular quando esta contraria interesses regionais.

Passados quase 10 anos da publicação destes trabalhos, é possível fazer um balanço do que entendo tenha sido minha modesta contribuição às interpretações sobre a natureza do federalismo brasileiro.

O que dizer sobre o argumento “a”?  Sustentei que a participação dos governos subnacionais na receita total não é uma evidência que diga respeito à autoridade institucional. Na verdade, no mundo, há estados unitários cuja participação relativa dos governos subnacionais no total do gasto público é até mais elevada.

Diferentemente, para entender a extensão da autonomia dos governos subnacionais, teríamos que examinar duas dimensões distintas de autoridade, distinguindo policy-decision making de policy-making, isto é, como está distribuída, em um arranjo constitucional, a autoridade para formular políticas e a autoridade para executar políticas. A Constituição Federal de 1988 concentrou policy decision-making na União. O governo federal no Brasil tem autoridade para iniciar legislação em toda e qualquer política, em particular aquelas que afetam as políticas executadas pelos governos subnacionais. Mais que isto, em muitas áreas esta autoridade é exclusiva da União. Governos subnacionais, por sua vez, têm autoridade para executar a maior parte das políticas que afetam o bem-estar dos cidadãos, mas têm suas iniciativas legislativas limitadas pelos poderes da União. Logo, amplos poderes legislativos da União dotam o governo central de autoridade para submeter ao Congresso legislação orientada a coordenar as ações de estados e municípios.

Observe-se, entretanto, que a autoridade da União para produzir políticas não deve ser confundida com a autoridade do presidente. Embora, por exemplo, o presidente possa iniciar legislação em matérias de energia, só pode fazê-lo porque no federalismo brasileiro esta é uma atribuição exclusiva da União. Isto significa que a Câmara e o Senado também podem fazê-lo, mas estados e municípios não podem. O mesmo pode ser dito para uma ampla gama de políticas públicas cuja execução está a cargo de estados e municípios. Em outras palavras, por União entende-se não apenas a figura do presidente, mas o conjunto das instituições da esfera federal, incluindo também o legislativo e o judiciário. No nosso caso, diferentemente das federações clássicas, a esfera federal tem muito poder de iniciativa. Para usar uma expressão da moda, muita autoridade está concentrada em Brasília e a autoridade do resto do Brasil é bem mais limitada.

A ampla autoridade da União para iniciar legislação em qualquer área de política pública data da Constituição de 1988. Isto significa que essa autoridade não data do Plano Real, no qual os poderes dos presidentes teriam sido ampliados. Diferentemente, dotar a União de amplo espectro de competências foi uma decisão dos Constituintes.

Portanto, somado aos poderes presidenciais, o amplo espectro de áreas de políticas públicas cuja competência é exclusiva da União coopera para produzir um centro forte, com recursos institucionais para criar políticas orientadas a coordenar as políticas dos governos subnacionais.

Ao serem responsáveis pelo policy-making de políticas reguladas pelo governo central, por sua vez, estados e municípios podem, sim, comprometer sua execução. Mas este risco potencial não é derivado de excessiva autonomia. Ocorre sempre que a implementação de uma política não é realizada por seus próprios formuladores. Isto significa que o potencial risco de desvio da implementação pode ser compensado por políticas bem desenhadas, que incorporem demandas dos governos subnacionais.

Na verdade, nos mandatos de FHC e Lula, o governo federal foi bem sucedido em produzir regulação das políticas de saúde e educação, por exemplo, cujos efeitos foram coordenar as ações de estados e municípios, reduzindo desigualdades de capacidade de gasto.

O que concluí acerca do argumento “b”? A composição do Senado deve, por definição, ser desproporcional. O Senado é a casa dos estados, o que implica dizer que estes devem ter direitos similares de representação nesta arena. Em todas as federações, o Senado é desproporcional.

Apenas para a composição da Câmara dos Deputados, que representa a população, o princípio de que 1 homem = 1 voto poderia ser invocado. A aplicação desta regra, contudo, implicaria voltarmos à composição da Primeira República, em que uma minoria de estados mais populosos dominava a Câmara dos Deputados. Se adotada a estrita regra de proporcionalidade populacional, uma minoria de estados (mais populosos) poderia esmagar sistematicamente a maioria (de estados menos populosos). Em 1988, os constituintes desenharam uma regra de desproporcionalidade que protege a maioria (dos estados) contra a vontade da minoria (dos estados), ainda que esta equação se inverta quando raciocinamos em termos populacionais.

Mais que isto, o impacto das instituições federativas não deve, do ponto de vista teórico, ser examinado apenas pelo ângulo das regras de conversão de votos em cadeiras. O estudo do (potencial) poder de veto dos governos subnacionais em uma federação deve também contemplar suas oportunidades de veto nas arenas decisórias, isto é, na arena parlamentar. Examinar poder de veto requer examinar as regras que regem a tramitação de matérias de interesse regional no Congresso. Sustento que estas oportunidades são bem limitadas no arranjo federativo brasileiro.

Em primeiro lugar, dificuldades para emendar a constituição, uma característica considerada pela literatura internacional como um esteio das federações, são comparativamente muito reduzidas no Brasil. O fato de que tenhamos emendado a CF 103 vezes, em 30 anos de sua vigência, dispensa comentários adicionais. Não importa se uma proposta de emenda à constituição afete os direitos de estados e municípios. Ela terá a mesma regra de tramitação que qualquer outra proposta de emenda.

Nossas regras não preveem qualquer princípio de ratificação, pelo qual os estados tenham oportunidades adicionais de veto. Se uma emenda constitucional for aprovada na Câmara e no Senado, entra em vigência. Muitas medidas que afetam os interesses de estados e municípios podem ser aprovadas por lei ordinária, o que exige quóruns ainda mais baixos para aprovação.

Em suma, as regras de conversão de votos em cadeiras em nosso modelo de federalismo visam proteger a maioria dos estados contra uma minoria de estados (mais populosos e também mais ricos). Mas, os estados (que estão representados no Senado) e os municípios (que têm grande influência na Câmara dos Deputados) somente podem vetar legislação que afete negativamente seus direitos caso tenham capacidade de exercer pressão nestas duas arenas. Portanto, nosso modelo de federalismo não permite apenas que a União inicie legislação em qualquer área de política pública. Ele também provê limitadas oportunidades de veto aos governos subnacionais, posto que a tramitação de matérias que afetam interesses de estados e municípios é a mesma que para qualquer outro tipo de legislação. Como veremos a seguir, o poder de veto dos governos subnacionais não é muito amplo se um presidente for capaz de reunir uma coalizão majoritária e disciplinada.

Para testar a solidez empírica do argumento “c”, isto é, de que o federalismo enfraquece os partidos, em particular porque os governadores comandariam as bancadas estaduais, examinei exclusivamente matérias de estrito interesse de estados e municípios, mais especificamente, matérias legislativas que tramitaram no Congresso e afetavam negativamente suas receitas, competências, ou autoridade. Encontrei expressiva capacidade do governo federal impor perdas relevantes a estados e municípios. Nestas matérias, as bancadas estaduais votaram divididas ao longo de linhas partidárias, seja na Câmara dos Deputados, seja no Senado. Mais que isto, não encontrei evidências de influências dos respectivos governadores no comportamento parlamentar dos representantes dos estados. Em vez disto, encontrei disciplina em torno das orientações dos respectivos líderes partidários, mesmo em matérias que afetassem negativamente os interesses de estados e municípios.

Estas evidências sugerem que o Brasil desenhou uma variedade de federalismo, mais próxima daquela encontrada na Alemanha e na Áustria, nas quais a União tem autoridade para regular as políticas implementadas pelos governos subnacionais assim como desempenha um papel de redistribuição inter-regional de recursos, reduzindo, via transferências federais, desigualdades de capacidade de gasto.

A desigualdade inter-regional me parece estar na origem do modelo centralizado de federação adotado no Brasil, a despeito de não termos clivagens étnicas ou religiosas, como apresentado pelo argumento “d”.  Entretanto, nossa federação está assentada, sim, sobre uma clivagem econômica relevante, que separa uma maioria de estados pobres, cuja renda é inferior à média nacional, de uma minoria de estados ricos.

A centralização é endógena à desigualdade regional, na medida em que a maioria de estados mais pobres se beneficia das transferências, realizadas via União, oriundas dos estados mais ricos. Se este desenho foi deliberado ou não é o objeto de meus estudos mais recentes.

Referências

ARRETCHE, Marta (2012), Democracia, Federalismo e centralização no Brasil.  Rio de Janeiro: FGV/Fiocruz.

ARRETCHE, Marta. (2010), “Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos?”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v.53, n.3, p. 587-620. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v53n3/a03v53n3.pdf

ARRETCHE, Marta. (2009), “Continuidades e descontinuidades da Federação Brasileira: de como 1988 facilitou 1995”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v.52, n.2, p.377-423. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v52n2/v52n2a04.pdf

ARRETCHE, Marta & RODDEN, Jonathan. (2004), “Política distributiva na Federação: estratégias eleitorais, barganhas legislativas e coalizões de governo”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, 2004, v.47, n.3, p.549-576. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v47n3/a04v47n3.pdf

ARRETCHE, Marta. (2002), “Federalismo e relações intergovernamentais no Brasil: a reforma de programas sociais”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v.45, n.3, p.431-458. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v45n3/a04v45n3.pdf

FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. (1999), Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro/São Paulo, FGV/Anpocs.

Como citar este post

ARRETCHE, Marta. (2020), “Um federalismo centralizado”. Blog DADOS – Revista de Ciências Sociais, [publicado em 25 março de 2020] Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/um-federalismo-centralizado/

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