Trinta anos de presidencialismo de coalizão

Sérgio Abranches


Em 1988, Sérgio Abranches publicava na DADOS um dos artigos mais citados da revista: “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”. Trinta anos depois, o conceito  proposto no artigo ainda é chave fundamental para compreensão da política brasileira e seus dilemas, suscitando acalorados debates públicos e acadêmicos. A convite de DADOS, Abranches retoma no texto a seguir todo esse debate, bem como suas evoluções recentes, além de conjecturar sua validade para os anos que se seguem.

Luiz Augusto Campos (editor-chefe)


Por Sérgio Abranches.

Em 1987, escrevi “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, publicado em DADOS, no início de 1988. O artigo analisava o modelo político brasileiro que estava subjacente à tendência dominante nos debates da Assembleia Nacional Constituinte e terminou, efetivamente, adotado na Constituição. O conflito entre a versão da Comissão de Sistematização, mais progressista, e o “centrão” mais conservador, organizado no plenário da Constituinte, apontava na direção do restabelecimento do modelo de 1946, ainda que com alterações. Retornaríamos, portanto, ao presidencialismo e ao multipartidarismo. Isso me convenceu de que se deveria examinar de forma mais sistemática os elementos institucionais da versão de 1946 do presidencialismo brasileiro e seus fundamentos sociológicos, para verificar os riscos à estabilidade política da democracia renascente. Evidentemente, tanto no debate constituinte, quanto em minha visão estava presente o espectro do fracasso do regime, o golpe de 1964 e a ditadura militar.

Desenvolvi, para tanto, um quadro de referências conceitual para demonstrar que o presidencialismo brasileiro continha tantas diferenças em relação ao modelo americano, a ponto de caracterizar um novo tipo de presidencialismo, que defini como presidencialismo de coalizão. Esse novo tipo se construía a partir da combinação do federalismo extenso e heterogêneo, da representação proporcional de lista aberta, de um sistema multipartidário, do bicameralismo e de uma Presidência forte e minoritária. Da perspectiva comparada, que adotei no artigo, o presidencialismo de coalizão diferenciava-se significativamente do presidencialismo americano e dos parlamentarismos europeus, inclusive aqueles que recorriam a coalizões multipartidárias para formar os governos.

Dei ênfase ao fato de que o presidente é eleito pelo voto direto majoritário do eleitorado nacional, enquanto os deputados e senadores têm nos estados seu colégio eleitoral. A Câmara é eleita pelo voto proporcional e o Senador pelo voto majoritário simples. Dadas a heterogeneidade estrutural do país e as variações regionais na força dos partidos, a configuração do eleitorado presidencial se distancia significativamente da conformação do voto para o Legislativo, tornando improvável que o partido do presidente consiga maioria no Congresso. Em decorrência, tanto a governabilidade, quanto a governança passam a depender da formação de uma coalizão majoritária no Congresso.

Essa dependência da Presidência a uma forte maioria é agravada pela necessidade reiterada de reformar a Constituição. A falta de confiança entre as forças sociais e os partidos levou, desde a Constituinte, à inclusão de temas típicos de políticas correntes na Constituição. A necessidade de emendas, seja para alterar políticas, seja para incluir novos temas, exigindo quorum de 60% dos votos, sobredeterminava a formação de “grandes coalizões” (um traço evolutivo que emergiria com a prática, portanto ausente no artigo). Nele, alertei, todavia, para alguns aspectos problemáticos, à luz das disfunções do modelo de 1946. Há um elemento estrutural de instabilidade da governança em um regime presidencialista dependente de coalizões parlamentares grandes, em um sistema partidário com tendência à fragmentação. Por outro lado, a diferença entre as jurisdições eleitorais do presidente e dos parlamentares embute potencial não desprezível de conflito entre as agendas do Legislativo, de inclinação mais conservadora, e do Executivo, de disposição mais reformista. No modelo anterior, esse conflito foi mediado por vetos militares, cuja recorrência politizava e radicalizava a alta oficialidade. Com o afastamento dos militares da política e os limites constitucionais que lhes seriam impostos, levantei a hipótese de que essa mediação passaria a ser feita pelo Judiciário. A judicialização da política conferiria uma espécie de poder moderador ao Supremo Tribunal Federal.

Trinta anos depois da publicação do artigo, período no qual me dediquei a outros temas de estudo, decidi escrever um ensaio longo, reavaliando as origens histórico-estruturais do presidencialismo de coalizão e fazendo um balanço histórico do desempenho dos governos da República. Revisitei a história republicana por suas crises, buscando entender os processos que encurtam mandatos presidenciais e ferem a estabilidade institucional. Desde 1945, excetuado o período autoritário da ditadura militar (1964-85), os presidentes brasileiros têm dependido de coalizões para governar, tornando-se reféns dos humores das oligarquias congressuais e estaduais. Nesse quadro institucional volátil, a implementação de políticas públicas fica aquém das necessidades do país. Clientelismo, corrupção e judicialização da política são aspectos hoje salientes do nosso modelo político que, se permitiu avanços significativos, tem mostrado disfunções e déficits de qualidade. O resultado foi publicado em livro.

A primeira questão, a meu ver, era por que o sistema bipartidário federal descentralizado, com uma Presidência fraca, foi substituído por um sistema partidário centralizado e uma presidência forte? Em outras palavras, porque o modelo presidencial da Primeira República (1889-1930), claramente inspirado na constituição dos Estados Unidos, não levou à consolidação de um presidencialismo bipartidário como lá?

A Primeira República se constituiu como uma frouxa federação de estados poderosos em uma União fraca. O presidente era o representante do consenso político entre as forças dominantes nos estados mais poderosos política e economicamente. O bipartidarismo no plano federal encapsulava diferentes sistemas de forças políticas estaduais, revelando o embrião de um sistema multipartidário regionalmente diferenciado. O colapso da Primeira República levou a um regime fortemente centralizado e autocrático, sob o comando de Getúlio Vargas. O fim da ditadura Vargas, numa onda democratizante determinada pelo após Segunda Guerra, culminou na Constituinte que instituiu o modelo político que defini como presidencialismo de coalizão. Um sistema partidário moderadamente fragmentado, com tendência à fragmentação crescente a cada ciclo eleitoral. O Judiciário, embora nominalmente independente, jamais foi capaz de atuar como uma terceira força para dirimir os impasses entre Executivo e Legislativo. Essa falha facilitava a intervenção arbitral recorrente dos militares e sua politização. Do mesmo modo que a versão original de nosso modelo político representou uma reação à experiência da Primeira República oligárquica e da ditadura Vargas, a versão, de 1988, respondeu às visões do fracasso da Segunda República e à vivência sob o regime militar.

As diferenças entre as duas versões do presidencialismo de coalizão, as características institucionais e a dinâmica político-decisória do modelo de 1988 foram analisadas por uma vasta e competente bibliografia, da qual me aproveitei para escrever o ensaio. São inúmeros os autores importantes na consolidação do nosso conhecimento do modelo político brasileiro em vigência. Menciono, como exemplares, as contribuições significativas de Argelina Figueiredo, Fernando Limongi, Fabiano Santos e Octávio Amorim Neto, entre, como disse, numerosos outros autores.

Concluí, com ajuda desses estudos e de uma análise detalhada do noticiário e dos debates parlamentares, que houve um claro padrão de desenvolvimento: a cada ciclo de governos autoritários, a Constituinte subsequente retinha algumas características institucionais por eles introduzidas e, ao mesmo tempo, reagia a suas feições autocráticas. O resultado foi um modelo político com um sistema partidário hiperfragmentado; um sistema federativo fortemente centralizado; um processo orçamentário que confere à Presidência o poder de agenda e amplos poderes discricionários sobre o gasto público; um Judiciário e órgãos de controle judicial mais fortes e independentes. Os estados e municípios ficaram demasiadamente dependentes do Governo Federal para financiar até mesmo ações que estão entre suas atribuições constitucionais exclusivas. Os parlamentares passaram a ter como uma de suas funções centrais atuar como intermediários políticos para extrair recursos fiscais da União em benefício de seus redutos eleitorais. Essa situação de dupla dependência — do presidente a uma coalizão parlamentar multipartidária extensa e das unidades da federação ao orçamento da União controlado discricionariamente pelo presidente — gerou um poderoso sistema de incentivos ao clientelismo, ao toma-lá-dá-cá e à competição por postos ministeriais e na burocracia federal com poder sobre o orçamento ou capacidade regulatória. A complexidade do processo político de formar e administrar coalizões excedentes da maioria simples e a barganha permanente por recursos fiscais, como prerrequisitos das decisões legislativas e da disciplina das coalizões, se tornaram, a meu juízo, as fontes principais de disfunções no sistema político brasileiro. Essa negociação sempre mais centrada em recursos do que em estratégias ou soluções, reduz a qualidade das políticas substantivas e eleva a probabilidade de criação de vastas redes de corrupção político-empresariais.

Um efeito colateral da extensiva constitucionalização de políticas públicas e da rotinização do emendamento constitucional é a judicialização da política. A revisão judicial de constitucionalidade e a intervenção da Suprema Corte para arbitrar conflitos entre facções no Congresso e entre Executivo e Legislativo tornaram-se elementos rotineiros da politica brasileira. O envolvimento reiterado do STF em conflitos políticos e institucionais levou à politização do Judiciário. Minha impressão, após a análise de vários casos levados ao STF, é que a judicialização da política ainda é maior e mais ampla do que a politização do Judiciário.

A conclusão a que cheguei, nesse balanço de 30 anos de presidencialismo de coalizão, é que a versão construída em 1988, com as alterações adaptativas que se seguiram, é mais resiliente a crises do que a versão original, de 1946. O modelo resistiu a dois processos traumáticos de impeachment. Resistiu à mudança do polo de poder, da aliança de centro-direita que apoiou os governos de Fernando Henrique Cardoso, para as coalizões de centro-direita-esquerda que mantiveram os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff. Passou por dois momentos de alta turbulência e incerteza, com os processos do Mensalão e da Lava Jato. Desaguou em uma eleição ultrapolarizada e agora enfrenta o desafio de um governo minoritário de ultradireita. Este último movimento não analisei no livro, que vai até o governo Temer, mas tratei dele, numa espécie de posfácio, em “Polarização radicalizada e ruptura eleitoral”, em Abranches et allii (2019).

Referências

Sérgio Abranches (1988). “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, DADOS, v. 31, n. 1, pp. 5-33.

Sérgio Abranches (2018). Presidencialismo de coalizão: raízes e trajetória do modelo político brasileiro, Companhia das Letras.

Sérgio Abranches et allii (2019). Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil de Hoje, Companhia das Letras, pp 11-34.

Como citar este post

ABRANCHES, Sérgio. Trinta anos de presidencialismo de coalizão, Blog DADOS, 2019 [published 31 May 2019]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/trinta-anos-de-presidencialismo-de-coalizao/