Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a 2019

Rogério J. Barbosa (Usp), Pedro H. G. Ferreira de Souza (Ipea) e Sergei S. D. Soares (Ipea)


O Brasil entrou nos anos 2010 cheio de esperança com relação às tendências da desigualdade de renda. Afinal, a primeira década do século XXI fora a melhor já vivida pelo país em termos distributivos. Entre 2001 e 2011, a renda média das famílias cresceu mais de 30%, a desigualdade medida pelo coeficiente de Gini caiu mais de 10%, e as taxas de extrema pobreza e de pobreza recuaram, respectivamente 4 e 12 pontos percentuais (Souza et al., 2019). Porém, ao invés de outra década dourada, o que o país viveu foi a perda de controle sobre as contas públicas, a pior recessão desde a redemocratização, um impeachment traumático, a eleição mais polarizada da nossa história e a recuperação econômica mais lenta que já experimentamos.

O objetivo deste texto é descrever o que ocorreu com a desigualdade, a pobreza e o bem-estar nesse período recente. O ano de 2015 foi um divisor de águas. E a instabilidade ali iniciada não afetou da mesma forma os diferentes estratos de renda. Para os mais pobres, a recessão perdurou até 2019, enquanto para os mais ricos já havia recuperação e crescimento a partir de 2016. Levamos, assim, o leitor até o minuto anterior à crise recente, desencadeada pela pandemia da Covid-19. Esperamos que essa contextualização um pouco mais ampla do que a conjuntura imediata auxilie na formulação de uma compreensão abrangente sobre os processos geradores da desigualdade.

 

1.            A evolução da Renda Domiciliar per capita

Em 2015, uma crise atinge em cheio as famílias brasileiras. A renda média havia aumentado 6,6% entre 2012 e 2014; no entanto, no ano seguinte, como se vê no Gráfico 1A, despencou 3,3%. Permanece então em baixa pelos dois anos seguintes, gerando a impressão de estagnação generalizada. Somente em 2018, a recessão parece dar lugar ao crescimento. A desigualdade ainda apresenta queda até 2015 (Gráfico 1B) – mas nesse último ano, já não se trata mais do processo de equalização verificado desde a década anterior, mas sim das consequências da crise, que afetou com intensidade um pouco maior os extremos da distribuição. No geral, todos se tornaram “igualmente um pouco mais pobres”. Porém, a partir dali, a tendência se inverte: alta consistente da desigualdade. O Gini deu saltos particularmente intensos em 2016 e em 2018, fazendo com que o Brasil registrasse, naquele ano, o maior nível de desigualdade da série: 0,545.

 

Gráfico 1: Renda média e Desigualdade – Brasil, 2012-2019

Fonte: elaboração dos autores a partir dos microdados da PNADC 2012/2019.

 

Do ponto de vista distributivo, retrocedemos uma década. E esse retrocesso ocorreu com mais força justamente no momento de recuperação econômica. A capacidade de apropriação do crescimento, em especial num cenário de austeridade, é desproporcionalmente mais favorável para os mais ricos. Mas ainda não é possível avaliar se, nesse caso, isso decorre de efeitos tardios da recessão, de características mais estruturais ou de decisões políticas tomadas a partir de então.

Seja como for, o crescimento não incidiu da mesma forma para as famílias ao longo da distribuição de renda. As Curvas de Incidência do Crescimento (Gráficos 2A e 2B) possibilitam o exame da variação dos mais pobres aos mais ricos. Quando negativamente inclinadas, indicam um “crescimento pró-pobre” e implicam redução da desigualdade. Se positivamente inclinadas, o oposto. De 2012 a 2015, as taxas de crescimento estiveram muito acima da média nos estratos mais pobres. Porém, nos anos seguintes, houve uma inversão, um crescimento em favor dos mais ricos. Mais ainda, o Gráfico 2B indica que os 50% mais pobres experimentaram crescimento negativo no período recente! Em outras palavras, a renda real dessa população caiu, e a queda relativa foi tão maior quanto próximos da base da distribuição.

 

Gráfico 2: Curvas de Incidência do Crescimento (%) – Brasil, 2012-2018

Fonte: elaboração dos autores a partir dos microdados da PNADC 2012/2018.

 

Com isso, a noção de “crise”, sem qualificativos adicionais, não parece ser uma boa descrição daquele momento. O ano de 2015 de fato representou uma recessão generalizada. Contudo, logo no ano seguinte, a recuperação econômica já seguia a pleno vapor para os 5% mais ricos – e pouco a pouco, de cima para baixo, foi se tornando mais abrangente. Em 2018, a recessão já havia ficado para trás para a metade mais rica. Mas na base, ainda havia crise.

O aumento da média da renda domiciliar per capita em 2018, que observamos no Gráfico 1A foi, na realidade, fruto desse crescimento concentrado no topo: a média global foi alavancada apenas pelo aumento no extremo superior. Um efeito conhecido por qualquer aprendiz de estatística: outliers exercem grande influência sobre a média. Naquele mesmo ano, os 10% mais pobres ainda perderam. E boa parte da população obteve apenas saldos negligenciáveis, experimentando estagnação.

 

2.            Componentes das mudanças distributivas

Até 2014, o principal motor do crescimento da renda domiciliar per capita havia sido a renda do trabalho. E, na inversão de tendências subsequente, foi também ela a exercer um papel central, mas por um motivo oposto. Entre 2015 e 2017, com o avanço do desemprego, do desalento e da informalidade (Barbosa, 2019), os abalos e perdas na renda do trabalho guiaram a queda da renda domiciliar. Os mais pobres foram os que mais perderam seus postos de trabalho. Mas outras fontes de renda também cumpriram um papel importante.

De modo geral, famílias que têm acesso a aposentadorias e pensões de seus membros puderam compensar ou se blindar um pouco das intempéries do mercado de trabalho. Entretanto vale aqui distinguir benefícios previdenciários em dois grupos: a) aqueles atrelados ao salário mínimo, geralmente decorrentes de aposentadorias por idade; b) aqueles superiores ao salário mínimo, geralmente decorrentes de aposentadorias por tempo de contribuição. Esses últimos, benefícios mais elevados, contribuíram também para a piora das desigualdades. Essas aposentadorias mais altas são extremamente concentradas no topo. É possível que a aprovação da Lei nº13.183, de novembro de 2015 (que acabou com a obrigatoriedade da aplicação do Fator Previdenciário), tenha facilitado e acelerado diversos processos de aposentadoria por tempo de contribuição. E, desde o primeiro momento, especialistas avaliaram que essa medida poderia contribuir para aumentar a desigualdade (ver, por exemplo, Caetano et al., 2016; Constanzi, Fernandes e Ansiliero, 2018). Se essa hipótese proceder, essa pequena mudança terá sido definitivamente um fator “pró-cíclico”.

O que mais causa espanto, porém, é o fato de que as transferências de programas sociais (BPC, Bolsa Família e outros programas) e derivadas de direitos trabalhistas (seguro desemprego/defeso) foram, nesse ínterim, basicamente irrelevantes para a evolução tanto dos patamares da renda domiciliar per capita quanto para as tendências da desigualdade. Seria esperado que, em período de crise, a proteção social atuasse de forma particularmente mais intensa. Isso, contudo, não aconteceu. Pelo contrário. No Bolsa Família, houve redução tanto no contingente de beneficiários como no valor dos benefícios. O Seguro Desemprego, por sua vez, claramente não conseguiu contrabalancear a perda da renda auferida no mercado de trabalho, apontando para problemas no seu desenho. Seu acesso foi, inclusive, dificultado após 2015 – com a exigência de um período maior de carência.

 

3.            Tendências da pobreza

O Gráfico 3 apresenta o percentual de pobres segundo quatro linhas de pobreza: as duas linhas de elegibilidade ao Programa Bolsa Família (R$ 89 e R$ 179 mensais per capita); e as linhas de um quarto e um terço do salário mínimo[1]. As tendências, obviamente, são compatíveis com as análises anteriores: as taxas de pobreza caíram monotonicamente entre 2012 e 2014, voltaram a crescer até 2017 e depois se estabilizaram.

Mas a dimensão da pobreza adiciona um elemento mais drástico à história contada até aqui. O padrão de crescimento “pró-rico”, observado a partir de 2015, não implicou apenas em aumento das distâncias sociais, mas na imposição de privações aos grupos já mais vulneráveis. E cabe destacar que a linha de R$ 178 per capita é próxima, em valores reais, daquela utilizada pelo Banco Mundial para mensuração da pobreza em países com PIB muito baixo (US$ 1,90 PPP per capita por dia). Em países de renda média, como o Brasil, os patamares considerados mínimos deveriam ser muito maiores. A piora de todos os indicadores no período recente, apresentada no Gráfico 3, expressa a gravidade da distribuição desigual das perdas e da recuperação.

 

Gráfico 3: Taxa de Pobreza, para quatro Linhas de Pobreza – Brasil, 2012-2019

Fonte: elaboração dos autores a partir dos microdados da PNADC 2012/2019.

 

E mais: nossas análises indicam que o comportamento das taxas de pobreza foi muito mais sensível a variações na desigualdade do que na renda média. Noutras palavras: se não houvesse piora na desigualdade, o Brasil teria continuado avançando no combate à pobreza tanto entre 2015 e 2018, quanto no período mais longo entre 2012 e 2018 – apesar da recessão e do subsequente baixo crescimento.

Há complementariedade entre o combate à pobreza e a redução da desigualdade; algo já destacado há tempos por outros autores (cf. Barros, Henriques e Mendonça 2001). No entanto, por vezes, isso ainda é esquecido no debate público. Num país tão desigual quanto o Brasil, a erradicação rápida da pobreza depende fortemente da queda da desigualdade.

 

4.            Considerações finais

Documentamos aqui o fim de um processo de melhoria na distribuição de renda domiciliar per capita, que as pesquisas domiciliares mostravam desde o início do século. Os retrocessos trouxeram os indicadores de volta para níveis iguais ou piores aos observados no começo da década, com perdas e ganhos distribuídos de modo muito desigual.

O mercado de trabalho não passou ileso pela brutal recessão depois de 2014 – e não se recuperou depois dela. Mas o que se destaca, nessa década perdida, é que a atuação redistributiva do Estado brasileiro deixou a desejar. Políticas e programas que poderiam mitigar o efeito da recessão e transferir recursos aos mais pobres tiveram sua eficácia limitada por problemas de desenho ou por restrições orçamentárias determinadas politicamente. Já fontes de renda concentradoras pouco sofreram com o freio fiscal. Foi surpreendentemente limitado o papel dos programas de transferência de renda e do Seguro Desemprego na contenção de todo estrago.

O caso do Bolsa Família talvez tenha sido o mais notável. Seu orçamento é desvinculado de qualquer fonte estável de arrecadação e o montante de seus gastos deve ser compatível com as dotações orçamentárias do país, definidas ano a ano. Com isso, em meio às disputas políticas por um pequeno pedaço do cobertor curto da União, desde 2014 as dotações do programa foram sistematicamente reduzidas. O resultado foram filas para o ingresso de novos beneficiários, desmobilização das buscas ativas da assistência social, desatualização do CadÚnico, queda nos valores dos benefícios per capita do programa.

Toda essa deterioração na infraestrutura da assistência social seria depois, a partir de março de 2020, sentida com muito mais intensidade, quando, em meio à crise econômico-sanitária, programas sociais emergenciais não puderam lançar mão desses recursos. Tatearam às cegas em busca dos mais pobres, informais e vulneráveis, que há muito poderiam constar nos registros oficiais.

Ainda assim, já existem sólidas evidências de que as medidas de urgência – pelo menos aquelas voltadas aos mais pobres –, apesar dos tropeços, lograram efetivamente conter os danos socioeconômicos mais patentes da pandemia. No entanto, não é esta ainda a grande remissão do Estado: são políticas temporárias, por definição, e que em pouco ou nada alteraram o desenho dos programas sociais em seu funcionamento ordinário. O problema é que, quando encerrados, não trarão tudo de volta aos mesmos patamares vigentes no momento anterior à sua elaboração. O cenário de desolação econômica terá se aprofundado.

Em 2015, enfrentamos a crise com os instrumentos de política social ainda herdados de 2014, prévios ao ajuste fiscal – e que foram pouco a pouco se desgastando. Contudo, o risco que agora corremos não é o de repetir a dose. A crise que se avulta é possivelmente a maior do século. E os instrumentos desta vez já estão desgastados.

 

Referências

BARBOSA, Rogério Jerônimo. (2019), “Estagnação Desigual: Desemprego, desalento, informalidade e a distribuição de renda do trabalho no período recente (2012-2019)”. Boletim Mercado de Trabalho – Conjuntura e Análise nº 67.

BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. (2001), “A Estabilidade Inaceitável: Desigualdade e Pobreza no Brasil”. Texto para Discussão, n.0800, Rio de Janeiro: Ipea.

CAETANO, Marcelo Abi-Ramia; RANGEL, Leonardo Alves; PEREIRA, Eduardo da Silva; ANSILIERO, Graziela; PAIVA, Luis Henrique; COSTANZI, Rogério Nagamine. (2016), “O Fim do Fator Previdenciário e a Introdução da Idade Mínima: questões para a previdência social no Brasil”. Texto para Discussão, n. 2230, Brasília: Ipea.

COSTANZI, Rogerio Nagamine; FERNANDES, Alexandre Zioli; ANSILIERO, Graziela. (2018), “O Princípio Constitucional de Equilíbrio Financeiro e Atuarial no Regime Geral de Previdência Social: tendências recentes e o caso da regra 85/95 progressiva”. Texto para Discussão , n.2395, Rio de Janeiro: Ipea.

SOUZA, PHGF; OSORIO, RG; Paiva, LH; SOARES, SSD. (2019), Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos. Brasília: Ipea.

 

Notas

[1] Tomando como referência o salário mínimo legal vigente em 2019.

Como citar este post

BARBOSA, Rogério; FERREIRA DE SOUZA, Pedro; SOARES, Serguei. Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a 2019. Blog DADOS, 2020 [published 16 July 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/desigualdade-brasil/

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