Sorte e Responsabilidade: O que há de errado com o igualitarismo de fortuna?

Lucas Petroni (Yale e Cebrap)


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Uma parte importante da filosofia política contemporânea tem dedicado seus esforços à tarefa de explicar e justificar os fundamentos da justiça social. Dentre o que podemos denominar de família de teorias igualitárias, isto é, concepções de justiça que acreditam que uma sociedade justa é necessariamente uma sociedade política e economicamente igualitária, um problema de pesquisa de primeira importância é responder à pergunta “igualdade de quê?”. Imaginemos que queremos avaliar se um padrão distributivo entre duas ou mais pessoas é igualitário ou não. Isto é, se um determinado arranjo distributivo satisfaz, ou não, o valor da igualdade. A primeira coisa que devemos resolver diante dessa situação é decidir em relação a que as pessoas em questão estão sendo tratadas (ou não) igualmente. Isto é, precisamos oferecer, de maneira explícita e precisa, o tipo de métrica distributiva estamos empregando em nossos juízos sobre a justiça social. Daí, igualdade em relação a qual métrica?

Podemos, por exemplo, avaliar a igualdade entre as pessoas em relação aos níveis de bem-estar subjetivo que elas desfrutam, ao em relação ao controle que elas exercem sobre recursos materiais disponíveis, ou ainda em relação a uma síntese de diferentes de fatores distributivos, tais como os indicadores empregados em índices de desenvolvimento humano. A diferença de equalisandum entre teorias acarretará consequências conceituais importantes. Tomemos um exemplo. Métricas de tipo subjetiva, fundadas na avaliação de preferências ou outros estados (subjetivos) de bem-estar, tenderão, de um ponto de vista distributivo, a recompensar mais disposições individuais “caras”, uma vez que uma mesma quantidade de recurso entre pessoas com necessidades muito diferentes produzirá um valor de satisfação individual muito discrepante. Em segundo lugar, teorias igualitárias precisam avaliar também os parâmetros interpessoais para uma distribuição justa. Isto é, uma vez determinado o equalisandum correto de uma teoria da justiça, ainda será preciso encontrar critérios de equidade interpessoal que evitem o benefício injusto (ou a exploração) entre agentes produtivos e agentes (potencialmente) exploradores. Para ficarmos com o mesmo exemplo, teorias subjetivistas precisam explicar, por exemplo, por que uma pessoa com um gosto excessivamente caro – alguém que só consegue se satisfazer em meio à opulência – mereceria mais recursos sociais do que uma pessoa em graves dificuldades materiais, mas com uma disposição pessoal de tipo estoica. Em contraste com a pergunta “igualdade de quê?”, essa segunda tarefa do igualitarismo tem sido denominada como “o problema da exploração interpessoal”.

Nenhuma concepção de justiça levou tão a sério, nem contribuiu tanto, para essas duas perguntas como o conjunto de teorias que compõem o chamado igualitarismo de fortuna (luck egalitarianism). De acordo com o igualitarismo de fortuna, o objetivo da justiça social é definido como a necessidade de retificar, e no limite neutralizar, os efeitos distributivos de circunstâncias involuntárias sobre a vida dos indivíduos. Para o igualitarismo de fortuna, o valor moral da igualdade deve ser entendido como um ideal de equidade distributiva entre sujeitos individualmente responsáveis pelo quinhão distributivo que lhes cabe (Dworkin, 1981a, 1981b; Arneson, 1989, 2002; Cohen, 1989). Ao longo dos últimos trinta anos, igualitários de fortuna como Ronald Dworkin, Richard Arneson e Will Kymlicka foram responsáveis pela padronização metodológica do debate sobre justiça social em torno dos problemas da “igualdade de quê?” e da “exploração interpessoal”. O sucesso do programa fortunista foi tamanho que G. A. Cohen, um de seus entusiastas, pôde concluir, no começo da década de 90, que o igualitarismo de fortuna teria um papel único na história do igualitarismo, “na medida em que incorporou a essa tradição a ideia mais poderosa do arsenal da direita anti-igualitária: as noções de escolha e responsabilidade [individuais]” (Cohen, 1989: 933).

Sem desconsiderar os ganhos conceituais trazidos pelo igualitarismo de fortuna, tanto para a filosofia política como para outras áreas nas quais problemas de justiça social são crucias (como, por exemplo, para a avaliação de política públicas), acredito que temos boas razões igualitárias para recusar o pressuposto central do igualitarismo de fortuna, a saber, que a primeira e mais importante pergunta de qualquer concepção de justiça social seja sempre a busca por um ideal de equidade distributiva imune à exploração interpessoal. Isso porque a realização de um padrão ideal de equidade distributiva não é o único aspecto normativo relevante, nem mesmo o mais importante, para a construção de uma sociedade igualitária. Ao contrário, como argumentam defensoras e defensores de uma visão relacional do valor da igualdade, as aspirações práticas do igualitarismo devem ser entendidas com base em um ideal político e social responsável por governar as relações interpessoais entre iguais reciprocamente responsáveis pela criação de uma sociedade justa. Como argumenta Elizabeth Anderson, o ideal igualitário é orientado pela co-criação de “uma ordem social na qual as pessoas mantenham relações de igualdade entre si” e, para isso, cabe aos teóricos e teóricas igualitárias identificar e desmantelar formas injustas de hierarquia sociais, “isto é, formas de relações sociais com base nas quais as pessoas dominam, exploram, marginalizam, aviltam e exercem violência umas sobre as outras” (Anderson, 1999: 313).

A visão relacional da igualdade não desconsidera a importância de problemas distributivos, mas os avalia de acordo com o seu papel para o estabelecimento de relações sociais governadas pelo respeito mútuo. Isso porque, no limite, mesmo arranjos distributivos equânimes do ponto de vista equitativo podem ser compatíveis com instituições de tipo autoritárias ou com formas inaceitáveis de desrespeito institucional, como por exemplo o emprego da distinção entre formas de pobreza “merecida” e “imerecida” como um instrumento legítimo de política pública. Uma concepção relacional de igualitarismo nos ajuda a repensar tanto as prioridades conceituais como as demandas normativas da justiça, recusando, dentre outras coisas, uma concepção punitivista de responsabilidade individual, na qual instituições distributivas auxiliam no propósito social de punição, por meio do estigma e da pobreza, de comportamentos e formas de vida tidas como irresponsáveis. Concepção essa, acredito, compatível em princípio com o igualitarismo de fortuna.

Ao invés disso, uma interpretação mais relacional e social do valor da igualdade nos leva a perguntar se uma condição crucial para a imputação institucional de responsabilidade econômica não seria o poder de participação efetiva na estrutura produtiva de uma sociedade, ou ainda se uma divisão mais justa dos ônus e benefícios da cooperação social não exigiria critérios explícitos responsáveis por governar as relações de produção (e não apenas de distribuição) de recursos sociais (Stanczyk, 2012). Ou, finalmente, se faz sentido justificarmos a crueldade estatal contra os ditos “irresponsáveis”, seja do ponto de vista de princípios de justiça, seja por conta das consequências dessa omissão para os padrões de solidariedade política em condições sociais concretas. Sociedades essas nas quais o direito de acumulação e herança ainda representam dogmas inquestionáveis e a posição da pobreza não é erradicada por razões normativas, e não por motivos técnicos.

Referências

ANDERSON, Elizabeth. (1999), “What is the point of equality?”. Ethics, v. 109, n. 2, pp. 287-377.
ARNESON, Richard. (1989), “Equality and equal opportunity for Welfare”. Philosophical Studies, v. 65, n. 1, pp. 77-93.
COHEN, Gerald Allan. (1989), “On the currency of egalitarian justice”. Ethics, v. 99, pp. 906-944.
CORAK, Miles. (2016), “Inequality from generation to generation: The United States in comparison”. IZA Discussion Paper 7520. Disponível em: http://ftp.iza.org/dp9929. pdf. Acesso em 12 de dezembro de 2018.
DWORKIN, Ronald. (1981a), “What is equality? Part I: equality of Welfare”. Philosophy and Public Affairs v. 10, n. 3, pp. 185-246.
_____. (1981b), “What is equality? Part II: equality of resources”. Philosophy and Public Affairs, v. 10, n. 4, pp. 283-354.
PETRONI, Lucas. (2017), “Igualdade e respeito deliberativo”. In: D. Werle et al. (orgs.), Justiça, teoria crítica e democracia. Florianópolis: NEFIPOnline. Disponível em: http://www.nefipo. ufsc.br/files/2017/10/Justi%C3%A7a-Teoria-Cr%C3%ADtica-e-Democracia.pdf. Acesso em 21 de dezembro de 2017.
RAWLS, John. (1997), Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes.
SCANLON, Thomas. (1998), What we owe to each other. Cambridge, MA.: Harvard University Press.
STANCZYK, Lucas. (2012), “Productive justice”. Philosophy and Public Affairs v. 40, n. 2, pp. 144-164.
VITA, Álvaro de. (2011), “Liberalismo, justiça social e responsabilidade individual”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v. 54, n. 4, pp. 569-608. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582011000400003. Acesso em 21 de dezembro de 2017.
WOLFF, Jonathan. (1998), “Fairness, respect and the egalitarian ethos”. Philosophy and Public Affairs, v. 27, n. 2, pp. 97-122.

Para ler o artigo, acesse:

PETRONI, Lucas. (2020), “Uma reinterpretação das liberdades negativa, positiva e de escolha”. DADOS, vol.63, n.2. Available from: https://doi.org/10.1590/001152582020208

Links externos

DADOS – Revista de Ciências Sociais: www.scielo.br/dados

Como citar este post

PETRONI, Lucas. (2021), Press Release DADOS, “O que há de errado com o igualitarismo da fortuna”. Blog DADOS, [published 25 october 2021]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/errado-igualitarismo-fortuna/

 

 

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